Quero falar sobre tetos trans e para tanto, me veio logo em mento o texto intitulado Um teto todo seu, de Virginia Woolf, com o qual dialogarei. Trata-se de um ensaio no qual a autora aponta as dificuldades das mulheres de sua época e antes dela de se inserirem no trabalho intelectual, em especial no que se refere à ficção, assim como reconhecimento acadêmico, artístico e científico. Ela se deparou com um “fato”: há uma enorme lacuna de escritoras mulheres ao longo da história.
Decerto a autora não irá explicar essa ausência feminina destes espaços através de argumentos biologizantes, que afirmariam que se não há ou não houve visibilidade das mulheres nestes espaços, isto só poderia ser em decorrência de uma deficiência ou falta de interesse essencialmente femininos.
Ao contrário, V. Woolf propõe compreender o afastamento das mulheres a partir de questões materiais: teria ela um teto todo seu para poder escrever? Quer dizer: teria ela condições materiais essenciais para poder escrever? Questões profundamente materiais são igualmente simbólicas. Material e simbólico aqui se amalgamam. O espírito não se encontra dissociado do físico em Um teto todo seu. O dentro e o fora do romance adquirem formas menos estanques. A vida limitada das mulheres escritoras limitaria suas escritas. De alguma forma.
Há, no texto de V. Woolf, uma denúncia que envolve uma crítica social assim como a construção de resistência histórica possível às mulheres. Resistência esta bastante frágil e diria mesmo que uma resistência à primeira vista derrotada pelas circunstâncias materiais extremamente pesadas. Mas presente de qualquer forma. Há a presença de uma inquietação, indignação frente uma realidade social injusta que é posta como intransponível ou pretensamente natural.
Por mais que, ao imaginar Judith, a irmã hipotética igualmente brilhante de Shakespeare, cujo destino, na época elisabetana, seria o suicídio em decorrência da total impossibilidade do desenvolvimento da sua capacidade criativa como artista, a narrativa de V. Woolf lhe tenha concedido um destino trágico, há alguma forma de resistência possível. Mesmo em um contexto de dor e morte.
Há, em todo caso, alguma forma de resistência por parte de Judith. V. Woolf admite que Judith vive ainda entre nós e que trabalhar, mesmo na pobreza e ignorância, vale a pena.
Talvez seja possível pensar que essa forma de resistência, ao não conseguir atingir o social sob a forma de uma luta e reivindicação coletiva, acabasse por se circunscrever ao indivíduo. Uma dor que irrompesse de forma concentrada, o peso de todo o patriarcado literalmente sob as costas de uma pessoa. No corpo da mulher solitária, louca, bruxa, relegado ao espaço da abjeção e total interdição social.
Se o desejo e o talento pela literatura ou trabalho intelectual não se encontram gravados ou determinados em uma espécie de destino ou capacidades biológicas inatas mas são frutos de condições sociais, há espaço, mesmo que restrito e sofrido, para resistência. Mesmo que o social seja colocado como uma estrutura quase intransponível. Há resistência mesmo no suicídio e na loucura, por mais que isso pareça paradoxal.
Mesmo que o social determine as terríveis restrições materiais as quais a autora tão bem menciona e analisa no ensaio e estas condições provoquem a loucura e desespero diante do absurdo das relações de poder, o social também comporta a fagulha da resistência, vislumbrando a existência da utopia, da revolução ou simplesmente o ainda não realizado.
O social, antes de tudo, se opõe ao natural, na exata medida em que ele é passível de transformação e contestação. Isso porque o social é histórico; ele comporta o novo. Mesmo que o novo pareça impossível ou absurdo. Na época elisabetana, o absurdo e o impossível da situação feminina ganharam a forma da loucura e do suicídio.
A única possibilidade da fuga da morte para as mulheres, na forma como foi posta no ensaio, é que a resistência tenha conseguido reverberar em formas materiais para além do indivíduo. Não foi o caso de Judith, infelizmente. Mas nós sabemos, a partir do contexto histórico em que falamos, que o feminismo de fato reverberou na história e se inscreveu no corpo social.
Se estamos aqui hoje falando sobre feminismo, isso significa que vivemos o ganho adquirido pelas nossas percursoras, fruto das lutas históricas, a custo sim de bastante sofrimento.
Proponho pensar quais são as formas de resistência de mulheres hoje em dia. Mais especificamente mulheres trans e travestis. Falo agora de transfeminismo. Estaríamos igualmente relegadas à loucura e à morte diante da recusa de uma realidade de pobreza física e psíquica, material e simbólica?
Woolf aponta o término do século XVIII como marco em que as mulheres de classe média (aqui, leia-se como “mulheres em geral”, indo além das isoladas, solitárias e melancólicas aristocratas escritoras de até então) começaram a se ocupar com a escrita e ganhar algum dinheiro com isso. Estaríamos nós igualmente vivenciando alguma espécie de marco, agora especificamente em relação a mulheres trans e travestis, com a internet, a mídia digital e os blogs? Começaríamos enunciar enquanto travesti na escrita pela primeira vez?
“A mulher e a ficção”. O equívoco do enunciado é produtivo, tanto para V. Woolf quanto para nós: podemos falar de “a ficção da mulher” assim como a “ficção sobre a mulher”. Enquanto a autora aponta o fato paradoxal de que muito se tem falado sobre a mulher na literatura enquanto tema – na escrita de homens, a tal ficção sobre a mulher – pouquíssima literatura foi escrita por mulheres (seja especificamente sobre mulheres ou não).
No que se refere à questão da mulher trans e da travesti há tanto a invisibilidade “da” e “sobre”. Mulheres trans e travestis além de não constarem na lista dos grandes autores canônicos, jamais foram tema da alta literatura.
Há aí a primeira diferença notável de se pontuar entre mulheres cis e trans. Uma diferença que diria se tratar de forma como tanto mulheres cis e trans são postas em posição de Outras. O interdito da mulher, cis e trans, que por mais que funcionem e signifiquem na história com suas particularidades, confluem para a constituição das grandes narrativas heróicas dos homens cisgêneros. Como disse V. Woolf, as mulheres tem servido de espelho para refletir a figura do homem com o dobro do tamanho.
Meu intuito não vai na direção de reconstituir a verdade. Este meu texto, assim como de Woolf, apontam para fagulhas possíveis e dispersas de verdades que podem ser reconstruídas pela escrita. Há silenciamento e apagamento e diante do silenciamento e apagamento é difícil se ater à literalidade dos fatos “tais como eles verdadeiramente são” ao invés de interpretá-los e tomar explicitamente uma posição.
Seria até um tanto irônico de minha parte eu falar na verdade a partir do discurso do verdadeiro sobre pessoas trans, sendo estas mesmas pessoas de gênero tido como falso ou absurdo. Falar sobre pessoas trans é ocupar o espaço que nos dão do impossível, do disparate mesmo. O que me faz a necessidade de lidar com a verdade de uma outra forma, assim como a própria verdade do sexo.
Portanto, não busco vasculhar a existência empírica de pessoas trans na história para dai concluir ou não alguma coisa sobre a literatura e o conhecimento (seja sobre a falta de acesso ou não a estes espaços/discursos) e então explicar as causas últimas da exclusão. Se trata, ao contrário, de observar os efeitos do silenciamento necessário de mulheres cis e trans para a constituição do gênero neutro do humano, e isso tendo implicações na literatura e produção de conhecimento. A interdição necessária que mulheres cis e trans ocuparam no espaço do Outro para que as grandes narrativas de homens e do seu gênero tenham sentido. Alteridade constitutiva.
Falo igualmente de um lugar em que procuro pensar quais condições seriam necessárias para que o teto todo seu de Virgínia seja um teto trans. Um teto necessário para que pessoas trans e travestis possam, quem sabe, escrever ficção ou produzir conhecimento.
O que é materialmente necessário para nós? Porque as travestis são tão pobres? Pode a travesti contar com o equivalente hoje em reais das tão faladas quinhentas libras anuais, tidas por V. Woolf como fundamentais para alguém se dar o luxo da escrita? Pode uma prostituta escrever?
Se dizemos sobre a importância do teto, decerto não estamos falando de um teto como uma prisão. V. Woolf aponta como as mulheres foram e são trancafiadas em casa e surradas caso ousassem questionar seu destino imposto, como os casamentos arranjados. A casa como uma prisão.
Para exercer a escrita precisamos de uma soma de ingredientes precisos: termos vivência para além do espaço privado, ocupar o espaço público, estabelecer contatos com as pessoas, enfim, viver; ao mesmo tempo em que se necessita também de um teto próprio que nos proporcione um número mínimo de não interrupções, ambiente em que haja algum silêncio necessário. Nem o teto como masmorra disciplinar nem a experiência pária do desterro é capaz de nos proporcionar este ambiente propício para o trabalho simbólico.
Como falar em teto e não falar ao mesmo tempo na família? Esta mesma família que se autoriza a expulsar suas membras travestis e forçá-las a estabelecer uma segunda família, ligadas ao exercício da prostituição. Nas palavras da minha amiga querida, Amara Moira, em um texto do seu blog “E se eu fosse puta”:
“Só quem é travesti ou mulher trans prostituta pra entender a razão de chamarmos cafetinas de “mãe” ou “avó”: demoniza-se a cafetina, mas não a família que nos expulsa de casa adolescentes, a escola que não se compromete com nosso acesso e permanência, o mercado formal de trabalho que fecha suas portas para nós, os hospitais que estão se cagando pras nossas demandas. A ideia de família que temos em mente não é, nem nunca foi, a dos comerciais Doriana.”
Diria que uma travesti não pode ter, materialmente ou simbolicamente, um teto enquanto a prostituição não deixar de ser criminalizada, ou melhor, nas palavras de Amara, “toda a rede de serviços que gira ao seu redor”, que faz com que, na prática, a própria prostituição seja tida como um crime. Isto porque, segundo a auto intitulada “puta escritora”, uma travesti não consegue tão facilmente alugar ou ter um imóvel.
O estigma travesti impede que elas consigam um teto, literalmente. Há um emaranhado de discursos que fazem com que efetivamente uma travesti não possa ter um teto, tanto no sentido legal-jurídico do termo quanto no mais subjetivo: o liberal-burguês, que regulamenta e protege a posse da propriedade privada, o penal, que em suas práticas criminaliza a prostituição, o patriarcal e o transfóbico, que legitima toda a forma de opressão e exclusão e nos fornece suficientemente o estigma.
Enquanto a família for tratada como sagrada e de âmbito intocável, travestis não terão teto. Enquanto for possível em nome da sagrada família e do poder soberano dos pais a expulsão de suas membras travestis, não haverá teto possível para uma escritora. Enquanto a escola, instituição tão conhecida por ser principal agenciadora de letramento para a população brasileira, em nome da higienização cisgênera, expulsar travestis de suas carteiras, não haverá teto, igualmente.
Lutemos então por um outro conceito de família e escola, nos afastando tanto de concepções liberais-burguesas como das sagradas. Os conservadores muito falam sobre a destruição da família e do perigo que isso acarretaria. Juridicismos são igualmente mobilizados quando se tenta legitimar a exclusão das travestis das escolas. O jurídico anda de mãos dadas com a transfobia, muito embora exista disputa através de lutas dentro deste mesmo discurso. É certo que estes mesmos conservadores transfóbicos iriam julgar uma verdadeira afronta legal+moral o pertencimento de travestis em escolas e famílias.
Não nos deixemos cair na perversidade deste discurso e naturalizar esta exclusão e afirmemos, em contrapartida, que família e escola estamos buscando: uma família sim, não a sua mera destruição como negatividade como nos informa o alarmado discurso conservador, mas sua positividade de uma família profana (em oposição à sagrada) que forneça teto para sua filha travesti e uma educação efetivamente laica, entendendo a escola como uma instituição de agenciamento de letramento de fato, não de agenciamento de bullyings. O jurídico também é lugar de disputa, a luta pelas resoluções sobre nome social e a aprovação de uma lei de identidade de gênero nos mostram isso; não é, contudo, um discurso que paira fora das relações de poder.