Uma reflexão sobre auto identificação de gênero e verdade

Por Beatriz Pagliarini Bagagli. Texto apresentado na mesa “Sobre a diversidade das identidades trans”, com Laura Leanora Dias, Jaqueline Ramirez e Kiô Morgana Ramirez, para a 1ª Semana da Visibilidade Trans Unicamp, organizada pelo coletivo Transtornar.

Já li com relativa frequência a seguinte formulação “identidades não binárias não possuem materialidade”. Este enunciado é mobilizado frequentemente em debates sobre as identidades trans e o estatuto de objetividade e verdade – assim como o estatuto de subjetividade e mentira – sobre as identidades de gênero. Quer dizer, há o funcionamento da ideia, mais ou menos implícita, de que existiriam identidades que poderiam ser mais pautadas no par objetividade-verdade e outras no subjetividade-mentira.

Muitas noções acabam fazendo sentido de forma mais ou menos explícitas ou implícitas, mais ou menos conscientes ou inconscientes, na associação entre a subjetividade e uma enunciação de uma mentira sobre si mesmo, ou melhor, a uma possibilidade de se enunciar uma mentira, uma distorção sobre si. Aí entra também a questão da auto-identificação, na medida em que essa mentira sobre si seria veiculada em nome do discurso de uma auto identificação que supostamente não se sustentaria por critérios pretensamente objetivos. A auto identificação passa a ser tida como a possibilidade máxima de se dizer uma mentira acerca de si mesmo.

Minha fala propõe que possamos refletir sobre como a assunção dessas noções pode fazer funcionar ou reproduzir um discurso transfóbico, um discurso sobre o controle das identidades trans que a princípio certamente desejaríamos criticar e combater.

Frequentemente aceitamos que o único critério de objetividade capaz de determinar a verdade sobre as identidades de gênero é a auto identificação. Contudo, vejo uma notável desconfiança em relação a noção de auto identificação, que me parece, em parte, despropositada e injustificada. Existe uma ideia, relativamente difundida em alguns discursos feministas, de que a defesa do reconhecimento das identidades a partir da auto identificação só poderia se dar através da assunção de uma perspectiva (neo)liberal ou do sujeito como centro e origem de si.

É como se tivéssemos que mediar um conflito, um antagonismo, ou escolher entre dois pólos, a saber, entre a auto identificação – os processos de subjetivação que envolvem a tomada da consciência de si – e a defesa de uma verdade pretensamente objetiva. Esta verdade objetiva entraria automaticamente em risco na medida em que se defenderia, de forma irrestrita, a legitimidade da auto identificação para a determinação do reconhecimento da identidade de gênero.

É como se nós nos colocássemos num lugar – mesmo sem nos darmos muito conta – de termos de controlar, no sentido de limitar, a possibilidade da auto identificação em defesa de uma verdade objetiva. Uma relação puramente opositiva, do tipo: se temos muita auto identificação temos, proporcionalmente, muito “risco” de encontrarmos sujeitos que irão ousar, pelos seus discursos de auto identificação, se posicionar contra a objetividade, situando-se no limite da verdade – por algum motivo a princípio simplesmente presumido: ou se acha que pessoas trans seriam de alguma forma descabidas (cabeças de vento), ou seriam de alguma forma desonestas. Nesta posição, somos instados a defender de alguma forma uma espécie controle para a auto identificação não produzir qualquer tipo de fala sobre a verdade da identidade de gênero.

Contudo, é preciso, a partir de um posicionamento crítico, desconfiarmos minimamente de todas essas assunções, de todas essas oposições pretensamente lógicas entre auto identificação e verdade, entre objetividade e subjetividade, entre mentira e verdade. Acreditar que os sujeitos iriam se colocar à beira do precipício da mentira se a elas forem dadas as oportunidade de terem reconhecidas suas identidades a partir da auto identificação faz muito sentido apenas se vivemos numa sociedade transfóbica, que na mesma medida, naturaliza a transfobia e enxerga toda e qualquer identidade trans como um atentado à verdade e objetividade. A transfobia está justamente naturalizada nesta relação. E é esta relação que precisa ser problematizada. Acreditar que temos que dobrar os sujeitos em nome da defesa de uma objetividade, que deveríamos fazer com que se dobrem diante da verdade se eles se situarem à sua margem e forçar com que reconheçam que estão ousando habitar subjetivamente a mentira, não decorre de uma conclusão em si mesma lógica.

O cerne do meu questionamento poderia recair: porque vemos a auto identificação em termos de “perigos” para o acesso da verdade objetiva? Esta associação não pode ser tomada como evidente – este é o papel de uma posição crítica e reflexiva, na medida em que, se por um lado, a auto identificação poderia ser vista como um “perigo” à verdade, ela também poderia ser vista como único meio de acesso a ela.

Só podemos colocar a necessidade de controlar os perigos da auto identificação na medida em que presumimos tão somente a produção deste perigo, numa via de mão única (e nunca como produção de uma verdade), e de que a perda da verdade é um perigo que precisaria ser de alguma forma evitado a todo custo. Mas afinal, qual é o perigo? Sob qual imaginário compreendemos este perigo? Precisamos, antes de tudo, objetivarmos este imaginário sobre o perigo que subjaz essas relações e esses raciocínios e poderemos ver que ao contrário do que supomos de imediato, não se trata de uma relação lógica ou evidente em si mesma. A partir desta objetivação, podemos desconstruir o imaginário de pessoas trans vistas a priori como desonestas e pouco confiáveis e desconstruir este estigma da mentira.

Toda forma de auto identificação, podemos pensar, guarda em si uma verdade. A auto identificação – produto de um processo em que o sujeito entra em relação com os sentidos (sociais e históricos) que o constitui – só se realiza a partir de marcos sociais e históricos determinados. Não uma verdade qualquer, se trata de uma verdade específica àquele que enuncia, em suas especificidades (e heterogeneidades) se estamos falando de uma posição trans. Subjetividade não é sinônimo de mentira, de criar “sentidos que não existem” sobre si. Ou em outras palavras, não somos constrangidos a priori a adotar uma noção de subjetividade como mentira, como se isso fosse auto evidente quando falamos sobre gênero. Diante de uma perspectiva materialista, subjetividade é material.

De minha posição, portanto, não é necessário que assumamos uma posição (neo)liberal ou individualista para defendermos a auto identificação como critério de legitimidade da identidade de gênero. Cabe ressaltar que a auto identificação, tal como foi e é mobilizada pelo movimento trans, se vincula muito mais às práticas de resistência (coletiva) aos saberes médicos, psiquiátricos e jurídicos que controlam nossos corpos do que a uma suposta forma de defesa de um sujeito individualista “dono de si”.

As pessoas frequentemente apelam para exemplos esdrúxulos para tentar contrapor este argumento. “E se alguém disser que é um brócolis, devo tratar a pessoa como brócolis?” Bom, a minha resposta a esse tipo de questionamento vai propor um deslocamento, a saber, de que não se trata de julgar, neste caso do “brócolis”, se a pessoa que enuncia de fato é um brócolis, ou seja, de incidir sobre o conteúdo de verdade da asserção, de saber se aquela pessoa empiricamente é um brócolis, mas sim compreender os efeitos inter subjetivos que uma fala como essa pode ter em nossa sociedade. Concluir que um sujeito falante não pode ser um brócolis, de que se trata meramente de um enunciado falso, não esgota a produção de efeitos de sentidos do ato performativo de dizer “eu sou um brócolis”.

Se alguém diz que é um brócolis certamente assumimos (a partir de gestos de interpretação) que ela está querendo significar alguma coisa com isso: ou assumimos que se trata de uma fala irônica ou então assumimos que poderia se tratar de uma pessoa “louca”, que sua fala decorre de algum delírio, por exemplo. De toda forma, entre o auto-deboche e a loucura (ou outro efeito menos óbvio), há desde sempre produção de interpretação sobre essa fala de auto identificação que gera efeito e, portanto, algum tipo de verdade em termos práticos. Não é possível, neste aspecto, habitarmos uma zona de mentira absoluta ou falta de verdade absoluta, por mais que a auto identificação seja imaginariamente tida como absoluta.

O exemplo do brócolis, dado seu teor de absurdo, possui limitações para o que estou querendo pensar sobre identidades de gênero (pois justamente nos impediria de compreender as especificidades sociais que dizem respeito ao gênero), mas é bastante sintomático sobre a forma como as pessoas veem as identidades trans como do próprio campo do absurdo.

Por fim, é preciso frisar que a auto identificação fez e faz parte de estratégias de resistências da população trans à cisnormatividade. Ao assumirmos que ela de alguma forma guarda um perigo oculto ou uma ideologia suspeita (como o individualismo ou o pós-modernismo), nós estamos por reafirmar, mesmo que inconscientemente, mitos e imaginários transfóbicos que acabam passando intocáveis ao olhar crítico.


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