Por Katherine Cross
Tradução: Viviane V.
[segunda parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]
Gestos de exclusão
Este é um movimento bastante crítico, uma vez que ele descreve o fundamento da ‘mina de dados’: o fato de que pessoas colonizadas ou marginalizadas são fontes de dados inertes, objetivos e sem voz que estão livres para serem moldados de acordo com a vontade da pessoa teorista.
A exclusão, neste caso, é de qualquer teoria gerada pelas pessoas colonizadas. Neste movimento encontramos teoristas falando em nome daquelas pessoas que estudam, interpretando suas vozes e, mais frequentemente, teorizando sobre elas e tomando para si a tarefa de dar a elas um significado para suas próprias existências. Assim, em discussões sobre pessoas transgêneras, pessoas trans* pensadoras são usualmente excluídas de formas bastante dramáticas em prol dos próprios esforços de teoristas na definição de quem e o que são pessoas trans*, do que significamos, e na determinação de como os dados brutos de nossas vidas devem ser melhor utilizados.
Quando nos deparamos com uma variedade de textos teóricos que discutem pessoas trans* de formas que prontamente podemos identificar como transfóbicas, há um notável buraco negro em quaisquer das páginas de “referências bibliográficas” ao final deles. Não se encontram referências a pessoas pensadoras trans* como Riki Wilchins, Susan Stryker, Sylvia Rivera, Julia Serano, Vivian Namaste, Dean Spade, Paisley Currah, Pat Califa, Stephen Whittle, Carol Riddell, Lou Sullivan, Jay Prosser, Tobi Hill Meyer, Emi Koyama, Joelle Ruby Ryan e outras mais. Caso se encontrem, elas são mencionadas de forma bastante oblíqua. Isto é especialmente marcante em relação a mulheres trans* teoristas que são, muitas vezes, mais fortemente excluídas que seus colegas homens trans*, para que não se fale das pessoas pensadoras que se identificam fora destas fronteiras (Kate Bornstein é uma rara exceção).
Dito isso, fazer referência de forma positiva a diversas teoristas trans* não significa a inoculação contra transfobia, como se evidencia em ‘Transgendering’, de Kessler e McKenna.
Entretanto, em muitos textos problemáticos, e mais amplamente na mídia problemática como um todo, encontramos uma exclusão praticamente completa de produções intelectuais trans*, e das teorias que fazemos sobre nossas próprias vidas. Para além dos “grandes nomes” que mencionei acima, praticamente todos dentro dos padrões acadêmicos de publicação, estão inúmeras pessoas blogueiras que pensam de maneiras muito interessantes sobre suas vidas, pensamentos que tendem a enfraquecer significativamente toda narrativa cis presente nos livros, mas tais ideias nunca merecem menção na teoria ou nos noticiários.
O grande apagamento
Se todos estes movimentos aparentam caminhar juntos de alguma maneira, eu imagino que seja por construção; eles estão todos relacionados entre si e frequentemente requerem uns aos outros para operar. Por exemplo, gestos de exclusão de teoristas trans* facilitam enormemente o grande apagamento, que é o generalizado apagamento ou desconsideração de experiências vividas por pessoas trans* na produção de teorias sociais e de gênero. A afirmação de Kessler e McKenna sobre o “profundo conservadorismo” que gera uma “aceitação relativa do transexualismo” [nt: sic] é algo que funciona somente caso se apague o sonoro coro de vozes transexuais que vão em sentido contrário a este, vozes que atestam tanto a falta de aceitação quanto as perspectivas políticas frequentemente complexas e diversas que qualquer de nós pode articular.
O mesmo ocorre quando Judith Lorber afirma que o “objetivo” de pessoas transexuais é serem “mulheres femininas e homens masculinos”. Nem preciso me dar ao trabalho de mostrar as legiões que são apagadas com esta proclamação teórica.
Até o momento, há uma tensão irônica presente neste texto, e ela se relaciona com o fato de que eu estou surrupiando este paradigma de quatro frentes de um livro que é fundamentalmente sobre o apagamento, efetivado pelo ocidente, de culturas, vidas, e pessoas não ocidentais, e ainda não falei sobre a ligação última da preocupação pós-colonial de Connell com a minha preocupação trans*: o apagamento ocidental da diversidade de gêneros em culturas não ocidentais.
Uma das melhores coisas que Suzanne Kessler e Wendy McKenna fizeram foi chamar a atenção a como teoristas ocidentais impuseram suas próprias definições sobre pessoas de gênero variantes que tais teoristas iam encontrando nas culturas que estavam colonizando. Kessler e McKenna apontam como, por exemplo, pessoas nativas americanas Dois Espíritos [nt: two spirit Native American, no original] foram classificadas de maneiras diversas em um esquema analítico de gênero e sexualidade que era decididamente europeu, mesmo que isso não tivesse nenhuma relação com as maneiras através das quais estas pessoas concebiam suas próprias vidas e através das quais suas culturas as viam. Isso, então, facilitou uma visão universalizante de gênero com a qual ainda vivemos, em que um ideal de gênero ocidental hegemônico é popularmente tido como culturalmente e temporalmente universal. Sempre houve homens masculinos e mulheres femininas – e somente isso – em todas culturas, em todos períodos históricos. Sendo assim, nosso sistema de gênero é “natural” e atemporal.
Você somente pode fazer isso se apaga as inúmeras formas através das quais as pessoas, historicamente e nas contemporaneidades, fizeram e fazem gêneros diferentemente deste esquema, estejam elas no ocidente ou não.
Há inúmeras [http://en.wikipedia.org/wiki/Mahu_%28person%29] pessoas [http://en.wikipedia.org/wiki/Hijra_%28South_Asia%29] que não são consideradas [http://en.wikipedia.org/wiki/Two_Spirit] nas grandes teorias de gênero, e pessoas com gêneros distintamente não ocidentais também veem suas contribuições apagadas, como a pessoa ativista e poeta Menominee Chrystos, cujo trabalho figurou na antologia ‘This Bridge Called My Back’. Mesmo teoristas feministas que, ostensivamente, estão investidas em quaisquer conceitos que as ajude a demonstrar que a designação de gênero patriarcal é construída e maleável, frequentemente não parecem prestar muita atenção a como tais gêneros [inconformes] imediatamente problematizam teorias universalizantes. Afinal, considerando-se estas existências, a filosofia de Elizabeth Grosz se torna bem mais frágil, não? As visões de uma universalidade feminina ou de uma mulheridade essencial [nt: essential womanhood, no original] em Luce Irigaray e Nancy Chodorow também se tornam profundamente problemáticas.
Para retornar a Robert Jensen também, suas repetitivas afirmações de que “trans falhou como um projeto político” constituem não somente um ‘grande apagamento’ dos êxitos que vejo ao meu redor dia após dia, mas também uma forma particular de fantasia que tanto pressupõe a ‘falha’ como o ‘projeto político’ mesmo: nem todas pessoas trans* são políticas ou compartilham dos mesmos objetivos ou conceituam a importância política de seu[s] gênero[s] das mesmas maneiras. Parece seguro admitir que Jensen não prestou atenção a nada disso (retornarei ao sr. Jensen em outra oportunidade, também).
Penetras no baile
Estes quatro movimentos, fases de uma amável sinfonia que mantém a fábrica de teoria de gênero trabalhando em sua ignorância de questões e políticas trans*, representam obstáculos bastante visíveis; eles têm de ser quebrados de forma a fazer o cânone mais inclusivo e mais preciso. De muitas e muitas formas, isso já aconteceu. Da próxima vez, discutirei algumas destas teorias.
Mas enfatizando, um pensamento distintamente transfeminista exige que se afaste destes tropos, bem como – em minha opinião – exige algo mais que, até agora, já discuti de algumas maneiras. A redefinição da teoria. Aquilo que se constitui como teoria válida é ainda frequentemente limitado às páginas em branco e preto de periódicos oficialmente impressos e revisados por pares completamente dominados por pessoas cis que ou mal ouviram falar de nós ou teorizam contra nós de maneiras incompetentes.
Ao considerarmos a ampla blogosfera trans*, torna-se evidente que a produção teórica e intelectual está – por necessidade – ocorrendo fora da academia ou em suas periferias. Os lugares onde pessoas trans* aprendem, se reúnem, se expressam e, sim, criam teoria estão frequentemente distantes destes lugares tidos como mais legítimos ou oficiais. O problema central que estes quatro movimentos definem é um problema de exclusão explícita: eles são aquilo que emerge da exclusão das pessoas trans*, do fracasso em tomar nossas experiências em consideração, e finalmente do desejo de falar por nós. Podem as pessoas cis evitar estes quatro tropos? Certamente. Mas o outro antídoto vital é que as inúmeras pessoas trans* no presente sejam consideradas teoristas de acordo com nossas capacidades, independentemente de nossas posições acadêmicas. Ainda vivemos em um mundo, afinal, em que pessoas médicas e psiquiatras cis supostamente sabem mais sobre nós do que nós mesmas.
Em ensaios recentes, falei sobre como nós precisamos tomar os meios de produção intelectual. A questão é que, de várias maneiras, nós já fizemos isso – acontece que algumas pessoas teoristas cis ainda não se dignaram a perceber isso.