Falar sobre a minha vivência como pessoa trans inclui me situar em que local eu falo. Falo a partir de uma certa posição de privilégio – enquanto mulher branca, de classe média, universitária que tem apoio, incluindo financeiro, da família. Isso só para me situar de uma forma mais ampla, já que as relações de privilégios se configuram de forma tal que elas funcionam através do seu próprio apagamento. Quero dizer: os privilégios são privilégios justamente porque muitas vezes não nos damos conta deles, e somos privilegiadas/os na exata medida em que naturalizamos estas relações sociais, ou seja, tornando-as invisíveis.
E falar desta posição reflexivamente – de mulher trans branca e estudante na Unicamp – me permite observar certos funcionamentos da formação social que são perversos para pessoas trans* que estão fora da universidade, ou fora de outros tetos. Tetos estes sejam familiares, sejam relacionados às condições de acesso econômico e materiais mais amplas. Há também um teto simbólico. Procuro pensar aqui uma realidade que pesa e pesa de tal forma mais pesada para certas pessoas trans, cuja grande parte não possui os mesmos privilégios que eu, que diz respeito a recortes de classe, raça, aceitação familiar, inteligibilidades identitárias (cissexismos e binarismos) dentre outros que certamente existem mas que por vezes não encontramos palavras para simbolizar.
Nós pessoas trans* temos problemas com tetos que deveriam ser nossos. Tetos de que somos sistematicamente destituídas. Um teto material e imaginário, real e simbólico. Estive pensando acerca de uma metáfora para pensar acerca dessa ausência de teto a partir de uma ida ao médico: vidas off label. Vidas precárias, clandestinas, puxadinhos de laje, resistências caducas pautadas na sobrevida e sobrevivência. Ser trans* é ocupar um espaço social de infração de uma lei sem data de publicação oficial ou parágrafos, mas cujo funcionamento se sente cotidianamente. Uma lei que não se aprende nem se legisla no aspecto jurídico estrito, mas que tem seus efeitos diversos e difusos na formação social. Vidas, sobretudo, não destinadas a suas vias retas, normais e esperadas do imaginário social, inessenciais, formando um conjunto heterogêneo de exceções ao sujeito universal cisgênero.
Vejamos a discussão sobre nome social, por exemplo. Eu fui a primeira pessoa a pedir o nome social na Unicamp. Isso foi em 2012. Contudo, já existiam, desde 2010 ou mesmo antes, inúmeras portarias e decretos que já previam o uso de nome social nas instituições públicas. O que significa então o fato de que eu tenha sido a primeira pessoa a reivindicar esse direito nesta instituição? Afinal, quais seriam as outras instituições as quais as pessoas trans* de fato já tinham ingressado?
Aqui caberia uma análise não meramente linear ou positiva destas medidas. Não considero a existência de uma lei em abstrato que tenha contemplado esta reivindicação histórica antes da própria demanda de luta concreta do movimento de pessoas trans*. É preciso observar então os silenciamentos que povoam estes acontecimentos, o que não é dito nos diários oficiais. Neste aspecto, do nome social, significa indagar: se há desde antes do ano de 2012 inúmeros decretos sobre nome social podemos depreender que se trata de uma demanda já existente e consolidada do movimento de pessoas trans* que diz respeito ao acesso às instituições públicas, no que tange ao tratamento ao nome e gênero nas burocracias destas instituções; contudo, o que vale questionar é acerca de quais instituições públicas estamos falando.
Se existe demanda para nome social em instituições; que instituições exatamente? Falar em ingresso em universidades públicas jamais pode significar a mesma coisa que “ingressar” numa prisão por exemplo. Ambas são instituições públicas, mas o ingresso em uma ou outra tem significados e implicações díspares. E quando falamos de um grupo populacional – pessoas trans* – não estamos falando enquanto soma de indivíduos. Estou falando sobre o fato, que deveria soar chocante, de que o nome social era uma realidade já presente nos presídios e delegacias de polícia há muito mais tempo do que a realidade de nome social em universidades e escolas.
Concluo que é mais fácil para uma travesti ingressar no sistema prisional do que numa universidade pública. É enunciável na ordem do discurso em que estamos inseridos a discussão sobre alas para mulheres trans* e travestis em prisões ao passo que não é igualmente enunciável a discussão sobre cotas para este grupo em universidades e empregos, assim como a permanência estudantil em escolas e universidades. Há visibilidade de mulheres trans* e travestis em espaços como a prisão e a delegacia, ao passo que há uma grande invisibilidade na universidade e escola.
Para compreender esta ordem do discurso – sobre quais fatos são postos como questões passíveis de serem discutidas na ordem do dia, sob um efeito de discutir racionalmente a “realidade” – é preciso que nos atentemos para estas realidades subterrâneas (não óbvias, que existem e funcionam através de efeitos de camuflagem que garantem transparência) que são profundamente brutais e brutalizantes. Mais do que gostaríamos e que poderíamos prever. Tarefa difícil de fazer falar o que está calado ou silenciado.
Voltando para a metáfora médica para nossas vidas, o off label. Falar sobre isso é perfeitamente plausível dentro mesmo da questão mais específica de acesso à saúde (e acessos mais específicos de demandas dos corpos historicamente posicionados como transgêneros, como hormonioterapia e cirurgias de redesignação sexual) como quanto a acessos materiais mais amplos que garantam nossa sobrevivência.
Nossa existência não se enquadra em protocolos de gênero ou diagnósticos, ela extravasa. Ocupamos com isso o lugar precário e clandestino em que somos instadas/os a mendigar cidadania e acesso à saúde. A lei de que não se tem escrito que mencionei acima funcionou, para citar mais um caso, quando meu médico me disse que hoje em dia cirurgias de redesignação são proibidas no Brasil assim como o ato de prescrição de hormônios para pessoas trans* se configurar como uma prática off label (e portanto, passível de ser criminalizada).
Ele estava de fato desinformado, porque estes fatos alegados não correspondem exatamente com a realidade. Mas não se trata de uma mera desinformação como falta de informação que seria passível de ser preenchida pela luz da razão. A dicotomia fatos/especulações imaginárias é bem complexa quando falamos de questões trans*. A desinformação não aparece aqui como pura negatividade, enquanto falta de algo. A desinformação cria algo, aqui ela está diretamente veiculada a uma prática médica. A realidade das pessoas trans em nosso país é de fato muito incerta no sentido de que há sucessivas camadas ocas de remendos de cidadania, de forma com que eu realmente não consiga ver uma coerência quando falamos de direitos a esta população.
Quando falamos de fatos e realidades transgêneras estamos imersos em profundos equívocos e ambiguidades que são construídas historicamente. O oficial em nosso caso é profundamente informal. A própria institucionalização de medidas precárias e paliativas como a do nome social desvela uma falta gritante por parte do Estado – ao ser incapaz de aprovar uma lei de identidade de gênero – trazendo a informalidade tipicamente off label para as demandas políticas. Há um funcionamento do informal e da desinformação que determina discursos em suas práticas.
Próprio do funcionamento destes discursos transfóbicos enquanto práticas sociais (pautados em saberes médicos, jurídicos, psicologistas, sociais). E é de desinformação em desinformação que se estabelece o funcionamento da marginalização e opressão. Diria mesmo que a desinformação é o próprio funcionamento dessa informação pautada em saberes e evidências cisgêneras. Desconhecimento não é falta de informação, ao contrário, é excesso. Há excesso de sentidos sobre homens e mulheres que impedem que o simbólico atinja o real em nosso caso. Na saturação de sentidos há impossibilidade de abertura ao Outro e a realidade do outro. O diagnóstico das disforias de gênero, ao imputarem um caráter patológico, é um típico estancamento do sentido em relação a transgeneridade. Um duplo processo que nega ou tenta estancar o movimento, tanto em direção a alteridade interna (a travestilidade, a não binaridade) quanto externa (a cisgeneridade). Ilusões da coerência do Um e do Mesmo. Há tanto silenciamento quanto saturação de sentido quando não se menciona o grupo de pessoas trans* nas indicações nas bulas de medicamentos hormonais, por exemplo.
Aqui vai outro caso. O mesmo desdobramento dessa lei cistêmica que sistematicamente produz desinformação aconteceu quando pedi para alterar meu nome no currículo lattes. O CNPq, órgão responsável pela plataforma, havia de fato se comprometido com a inserção de nomes sociais nos seus currículos, como consta na publicação do blog da Jaqueline Gomes de Jesus. O problema vem, então, de um lado em que há um excesso de informações pautadas nas evidências do sujeito universal cisgênero, e do outro em que a nossa valiosa informação – respeito ao nome social – se encontrar profundamente localizada, restrita. Quero dizer: neste caso era necessário falar tão somente com a ouvidoria do CNPq, já que apenas o ouvidor tinha conhecimento do nome social; enquanto isso, os demais atendentes iriam tão somente basear suas práticas nos saberes e evidências do sujeito cisgênero. Evidências estas que tomam como óbvio que “todo mundo” tem que ter seu nome no currículo de acordo com os seus dados que constam na receita federal; não havia nada alí que pudesse servir de contestação a essa suposta verdade universal. Tudo isso num diálogo com uma atendente que havia falado comigo ao telefone. Da informação óbvia e evidente que passou então a uma grosseria pelo telefone, ao ser a atendente interpelada com a questão do nome social. Mas não havia abertura simbólica suficiente para que nome social significasse alguma coisa para aquela pessoa. O acesso ao direito se encontra profundamente restrito, porque os sentidos estão divididos, localizados e estancados. Controlados. Soa quase como algo da ordem do tabu ou proibido. Os sentidos não fluem nada bem também nos espaços das clínicas.
Diria que a tomada de consciência política enquanto mulher trans* tem a sua tomada de devir travesti. Isso porque na minha opinião temos que tomar cuidado com exclusões simbólicas quando nos pautamos na crença de uma coerência de identidades. O chamado “processo transexualizador”, a despeito de se configurar como um avanço histórico no acesso a saúde, tem funcionado na maioria das práticas médicas (já tão restritas) como um verdadeiro processo brutalizador. É preciso abertura ao simbólico para que esse excesso de saberes e verdades não imprimam tamanha violência contra os corpos que fogem, que estão à deriva. Só assim estaremos falando de acesso a saúde integral, universal, gratuita e de qualidade e de direitos humanos e civis (direito ao nome, desde sempre já social).