Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
A transição social de gênero não é uma intervenção médica (ou do âmbito de qualquer outro profissional da saúde) – e por isso não deve ser entendida como tal. Intervenções médicas ou mesmo psicológicas são pensadas em termos de riscos e benefícios em potencial e o processo de tomada de decisão referentes a elas, portanto, é compartilhado com os profissionais de saúde.
Isso não se aplica para a transição social, incluindo de crianças e adolescentes, pois estamos falando sobre processos e vivências de natureza estritamente pessoais ao mesmo tempo em que sociais, culturais e até mesmo políticas (a escolha da forma como expressamos o nosso gênero, como reivindicamos sermos chamados por exemplo, e como essa expressão e/ou demanda de reconhecimento é percebida e interpretada socialmente em espaços cruciais para a nossa socialização e exercício de direitos, como escola, ambientes de trabalho, etc.) que prescindem naturalmente de qualquer tipo de controle ou aval de profissionais de saúde. A transição social pode ocorrer independentemente da realização de qualquer tipo procedimento médico de alterações corporais.
Ashley e Skolnik (2022) apontam que a transição social envolve a manipulação dos traços relacionados a nossa expressão de gênero, o que inclui a escolha de roupas, acessórios e penteados, por exemplo. Enquanto algumas pessoas adotam uma expressão que facilita a aceitação de sua identidade a partir das normas sociais previamente estabelecidas, outras irão adotar uma expressão inconsistente ou em tensão com as expectativas sociais. Em ambos os casos, trata-se de uma decisão pessoal que pode se realizar continuamente enquanto um processo aberto de experimentação ou exploração. Em última instância, o processo é a respeito do que a própria pessoa encontra para que ela se sinta bem.
Evidentemente os profissionais de saúde podem oferecer diversos tipos de recursos para auxiliar a transição social das pessoas trans assim como fomentar reflexões, conscientização e diálogos não prescritivos a respeito das diversas questões que podem envolver este processo (tal como as diversas dificuldades e desafios enfrentados pelas pessoas trans ao iniciarem a transição, o que inclui a forma complexa como lidamos com as normas sociais que estruturam as leituras sociais sobre a nossa expressão de gênero e o estigma transfóbico), pois de fato a transição é um aspecto frequentemente decisivo na vida das pessoas trans, com inúmeras vulnerabilidades em potencial.
Os profissionais de saúde devem compreender, contudo, que a decisão pela transição social não depende do seu âmbito de decisão profissional. A transição social não é uma intervenção profissional, ela é literalmente sobre a forma como vivemos a nossa vida. Como Ashley e Skolnik (2022) bem pontuam, “não há escolha boa ou ruim na transição social, apenas escolhas que são adequadas ou inadequadas a indivíduos únicos com base em seus desejos e necessidades”.
Perspectivas cisnormativas no cuidado com a saúde para a população trans, especialmente da mais jovem, podem equivocadamente defender que a transição social seja interpretada como uma espécie de intervenção médica ou psicológica. Isto acaba produzindo, como efeito, a ideia de que seja necessário mais controle sobre os corpos trans e como vivemos nossas vidas, mesmo em aspectos mais corriqueiros e cotidianos, como a forma como nos apresentamos socialmente (percebam como o mesmo nível de controle jamais seria aplicado para vivências cisgêneras). Uma intervenção médica precisaria ser justificada em termos de riscos e benefícios, colocando potencialmente em suspensa a agência de uma criança ou adolescente sobre esse processo caso compreendamos que a transição social é uma intervenção.
A justificativa para esse entendimento mais recorrente é a mesma do velho gatekeeping: supostamente “proteger” o jovem de se arrepender futuramente, evitando talvez uma destransição, por exemplo (mesmo se estivermos discutindo aqui aspectos relacionados a transição que são estritamente sociais). Trata-se de uma concepção paternalista de cuidado que se justifica pela suposta proteção do jovem tendo em vista evitar algum sofrimento ou dano que decorreria da transição social (como se fosse ao menos possível, para início de conversa, prever o complexo processo de identificação e expressão de gênero de uma pessoa e suas múltiplas e imprevisíveis consequências na vida concreta), ignorando a agência dos jovens sobre a forma como eles desejam expressar o seu gênero – assim como o próprio fato de ignorar ou minimizar os inúmeros efeitos deletérios evidentes de proibir que um jovem expresse o seu gênero como ele mais deseja. Não permitir que um jovem possa fazer a transição social para que ele não se arrependa depois é, antes de tudo, um contrassenso que só faz algum sentido porque vivemos sob a égide da cisnormatividade e, por conta disso, normalizarmos um controle desproporcional sobre os mais diversos aspectos das nossas vidas. Ainda de acordo com Ashley e Skolnik (2022, p. 29):
Embora a experiência seja relativamente rara, alguns sentem desconforto ou arrependimento com a transição social. Isso pode levá-los a retornar a um papel de gênero correspondente ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Na maioria das vezes, isso se deve a fatores externos, como medo de discriminação e violência, mas para alguns, é simplesmente porque a transição social não era para eles. Se você sente que a transição social não foi a escolha certa para você, esse é um sentimento perfeitamente válido e você deve se sentir à vontade para revertê-lo, se desejar. A transição social não é apenas sobre o objetivo final, mas também sobre o processo. Exploramos através da transição e isso significa que podemos perceber que não era para nós. Muitas vezes, as pessoas que revertem a sua transição social relatam gratidão pela oportunidade de explorar seu gênero, apesar de perceberem que isso não combinava com elas.
A ideia de que a transição social é uma intervenção que demandaria algum tipo de justificativa profissional ou mesmo pela pesquisa científica-acadêmica (vejam, neste aspecto, como é equivocado atrelar a realização de estudos clínicos cegos e randomizados para o oferecimento de cuidados de afirmação de gênero; Jack Turban explica isso aqui) simplesmente normaliza o policiamento da expressão de gênero e da subjetividade das crianças e adolescentes por esses profissionais, posicionando a cisgeneridade como o ideal normativo em nome de uma pretensa relação terapêutica. Além de paternalista, trata-se de uma perspectiva enviesada pela cisnormatividade, pois ela frequentemente concebe, implicitamente ou não, que uma transição social em crianças e adolescentes poderia “incentivar” a consolidação da identidade trans e supostamente o próprio desejo em realizar alterações corporais. Com isso assume-se, portanto, que a identidade trans é menos desejada que a cisgênera e também que as intervenções realizadas nos corpos de pessoas trans que passaram por procedimentos de alteração corporal são mutilações indesejadas (além de ignorar, claro, que nem todas as pessoas trans desejam realizar as alterações corporais e que essas alterações corporais são, via de regra, comprovadamente benéficas para a saúde física e mental para aquelas que as realizam), indicando, aqui, o viés cisnormativo. Cabe ressaltar que não existe nenhuma evidência que mostre que a permissão para as crianças e adolescentes fazerem a transição social as impeçam ou as dificultem no eventual retorno para a expressão de gênero original caso assim o desejem em seu processo de subjetivação – o que mostra como as preocupações sobre os supostos “riscos” da transição social revelam muita mais sobre os vieses cisnormativos do que qualquer outra coisa.
Frente a esse tipo de especulação sobre desfechos negativos de saúde mental decorrente da transição social, é relevante ressaltar, como bem faz Ashley (2021), que o apoio para a transição é oferecido para os jovens que efetivamente a desejam. Afirmar o gênero de um jovem trans é sempre defendido e realizado em concomitância com a construção de um ambiente sempre acolhedor no qual a volta ao gênero designado ao nascimento seja sempre vista como uma alternativa possível sem julgamentos negativos. Isto pode parecer a princípio bastante óbvio, mas é preciso frisar tendo em vista a necessidade de dissipar as alegações de perspectivas cisnormativas que frequentemente distorcem deliberadamente a ética do modelo afirmativo no cuidado com a saúde como se alguém estivesse prescrevendo a identidade trans como mais desejável que a cisgênera ao defender a transição social para crianças e adolescentes (conferir neste sentido, o que discorro a respeito do mito #1). Defender um mundo mais habitável para as pessoas trans é benéfico para todas as demais pessoas, incluindo pessoas em não conformidade de gênero que não realizam procedimentos de alteração corporal nem a transição de gênero (o que inclui também aquelas que destransicionam, ao contrário do que a princípio pode parecer).
Saber diferenciar os diferentes aspectos e especificidades que envolvem a transição de gênero e explicitar como a cisnormatividade funciona enquanto um viés é relevante em um contexto de sucessivos ataques legislativos ao acesso a saúde de jovens trans.
Gostaria de trazer aqui a tradução de uma thread de @FierceMum (perfil no Twitter de Cal Horton, autore que escreve para o excelente blog growinguptransgender.com) que discute exatamente porque a transição social não é uma intervenção, publicada no Twitter em julho de 2022:
Publiquei dois artigos revisados por pares sobre crianças trans e transição social. Um terceiro artigo será lançado em breve, centrando as visões e experiências de crianças trans.
Gostaria de chamar a atenção para supostos comentários feitos esta semana pela Dra. Hillary Cass sobre este tema (fio curto).
Supostamente a Dra. Cass disse: “A transição social é uma intervenção poderosa. Ela ser o desfecho certo para toda criança é uma decisão complexa a ser tomada”. Supostamente, ela propôs que as escolas não deveriam aceitar crianças trans sem a permissão dos pais. Eu não ouvi isso em primeira mão.
Eu quero desafiar este (suposto) comentário em três frentes.
Em primeiro lugar, a transição social NÃO é uma intervenção.
Negar a identidade de uma criança, ignorá-la e rejeitar o seu autoconhecimento são uma intervenção MUITO MAIOR do que simplesmente seguir a sua liderança.
Seguir o exemplo de uma criança, ESCUTÁ-LAS, dizer-lhes que são dignas e amadas e bem-vindas e aceitas quem quer que sejam, é vital para a auto-estima e auto-valor das crianças.
Isso é absolutamente básico e não é uma ‘intervenção’ em nenhum sentido médico.
A afirmação, ou ‘apoio para a transição social’ pode ser poderosa, pois muitas vezes pode significar uma mudança significativa em uma criança com depressão, rejeição e auto-ódio, para o início de se sentir confiante e conseguir aproveitar realmente a sua infância.
Descrever isso como uma ‘intervenção poderosa’ é preocupante, pois claramente não entende o que está acontecendo quando uma criança é afirmada.
É preciso uma ‘intervenção’ muito mais ativa para rejeitar e negar uma criança trans.
Parar a rejeição não é uma ‘intervenção poderosa’.
Rejeitar uma criança trans é uma intervenção poderosa (+ prejudicial e abusiva).
Incentivar pais ou professores a rejeitar a identidade de uma criança trans é uma intervenção poderosa.
A evidência é clara sobre os danos da rejeição na infância.
Uma segunda grande imprecisão das palavras (supostas) da Dra. Cass é a descrição da transição social como um ‘desfecho’.
A transição social não é um desfecho. Não é um final. Não é uma conclusão. Crianças trans podem experimentar um novo nome ou pronome. Eles podem mais tarde experimentar outro.
Crianças trans (e todas as crianças) podem aprender o que é confortável experimentando coisas, aprendendo através da transição social (como escrito por @ButNotTheCity). Uma criança pensa que gostaria de ser chamada de ‘ele’. Isso não é o fim. Isso não é um desfecho. Isso não é uma conclusão.
A transição social não deve ser pensada como algo tão pesado e estressante. Em vez disso, pode ser uma jornada de uma criança descobrindo o que a faz feliz. Uma jornada em que pais, cuidadores e escolas precisam dizer a eles que são aceitos e amados QUALQUER FORMA.
Os comentários (supostos) da Dra. Cass demonstram uma cisnormatividade significativa ao priorizar a cisgeneridade como padrão, e ao assumir que afirmar uma identidade trans é de alguma forma uma intervenção mais significativa do que negá-la.
Tal cisnormatividade causa danos e leva a recomendações ruins.
Meu primeiro artigo publicado (de acesso aberto) sobre este tópico é “’Eu nunca quis que ela sentisse vergonha’: reflexões dos pais sobre apoiar uma criança transgênero”.
Meu segundo artigo investiga os danos da rejeição de crianças trans. “’Eu estava perdendo a sensação de que ela era feliz’ – crianças trans e o atraso da transição social”.
Dra. Cass não parece entender crianças trans (ou adultos trans). Ela precisa examinar suas próprias lacunas e preconceitos de conhecimento. Ela precisa começar a ouvir.
E enquanto ela não está ouvindo, o resto de nós precisa começar a falar sobre os danos dos conselhos que ela está dando.
Imagem: Unsplash.