Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Quando se vê um enunciado do tipo “pessoas assumem uma identidade transgênera para questionar as normas de gênero” e “pessoas assumem uma identidade transgênera para se adequar às normas de gênero” a princípio temos teses opostas, mas partimos de pressupostos idênticos: a transgeneridade é um “meio” para atingir uma finalidade – seja para questionar as normas de gênero ou aderir às normas de gênero.
Assim, se assumimos (ou “recomendamos”; “orientamos”, “instruímos”, “esclarecemos”, etc) que uma pessoa não deve ou não precisa questionar as normas de gênero ou que não deve ou não precisa se adequar às normas de gênero, a transgeneridade deixa de fazer sentido ou de ter sentido – já que não haveria necessidade deste “meio” para alcançar este suposto “objetivo”, que abandonamos porque assim fomos “esclarecidos”. Estas formas de desqualificação e invalidação das nossas identidades são extremamente comuns e recorrentes. Percebam que o fato de que a transgeneridade significar de formas opostas precisamente fortalece este argumento ou raciocínio, ao invés de depor contra, já que podemos concluir o mesmo a partir de teses ou premissas opostas. Quanto a isto, vale a pena assinalar, como faz Elliot (2009, p. 20), que pessoas trans, em especial as transexuais, tendem a serem vistas contraditoriamente tanto como mais “radicalmente contestadoras” quanto mais “normativas” que as demais.
É muito comum também encontrarmos o enquadramento da subjetividade trans no interior de uma racionalidade de causa e efeito. A psicologia e medicina, se pretendendo científicas, enquadram espontaneamente a subjetividade transgênera como efeito de algo – isto é, buscam etiologias das identidades trans. Ou seja, a transgeneridade aparece espontaneamente como um objeto a saber, no interior destas disciplinas científicas, que requer explicação, etiologia. Ao buscar etiologias, patologizam as identidades trans. Este é um modelo de cientificidade que precisa ser criticado e abandonado. Quando falamos sobre subjetividade não podemos mais ficar no terreno de causas e efeitos.
Não seria muito difícil encontrarmos enunciados do tipo “o endosso das normas de gênero causa a transgeneridade” e “a subversão das normas de gênero causa a transgeneridade”; “a transgeneridade é efeito do endosso das normas de gênero”; “a transgeneridade é efeito da subversão das normas de gênero”.
Em ambos os casos estamos no interior de uma racionalidade que enquadra a subjetividade em relações de causa e efeito. Buscar as supostas causas ou origens de nossas identidades é uma maneira de exercer poder contra elas, porque estamos a mercê de questionamento e assim, invalidação de nossas identidades. Serano (2013, p. 3181; 2007, p. 66) formula precisamente que:
Como transexual, sou inundada de atribuições que tentam explicar porque eu existo (seria um defeito genético? doença mental? hormônios que deram errado? criação errada?), e as pessoas frequentemente projetam (ou atribuem) segundas intenções em mim para explicar o porquê. Eu me identifico como mulher (para me assimilar na sociedade heterossexual? por razões sexuais? para me infiltrar em espaços exclusivamente femininos?). Em contrapartida, a cissexualidade e as identidades de gênero cissexuais nunca são questionadas ou tornadas suspeitas dessa maneira. Há uma série de vieses que influenciam as atribuições que as pessoas tendem a fazer.Quando passei a aceitar a minha própria transexualidade, tornou-se óbvio para mim que a pergunta “Por que transexuais existem?” não é uma questão de pura curiosidade, mas sim um ato de não aceitação, pois ocorre invariavelmente a ausência da pergunta recíproca: “Por que os cissexuais existem?” A incessante busca para descobrir a causa da transexualidade é projetada para manter as identidades de gênero transexuais em um estado perpetuamente questionável, garantindo assim que as identidades de gênero cissexuais continuem a ser inquestionáveis.
Ao buscarmos causas, etiologias, entramos no campo da psicopatologia. Tornar nossas identidades constantemente questionáveis no interior de um discurso de invalidação também é um requisito para que elas sejam estigmatizadas. É por isso que a despatologização é tão importante no nosso contexto atual de luta. Ao refletir a respeito da patologização das identidades de gênero dissidentes das normas, Nelson (2014, p. 5) reflete:
Parece que transformar condições moralmente injuriadas em doenças que são (ou deveriam ser) moralmente inócuas não está a altura da tarefa de ajudar as pessoas queer a desenvolver compreensões satisfatórias sobre elas mesmas, porque tais compreensões não são o tipo de coisa alcançável por meio da referência a uma doença, ou, ainda, ao tipo de explicação causal no qual as ciências trafegam. Não pretendo ser rude com explicações causais; elas são uma característica extremamente importante de como quase todos nós entendemos e percorremos o mundo. No entanto, nem tudo o que é obscuro pode ser esclarecido por meio da compreensão de regularidades causais.
Acho interessante esta citação, pois ela sugere que a auto compreensão que sujeitos queer buscam não se dá necessariamente no interior de uma racionalidade de causa e efeito. Auto compreensão, portanto, não é uma explicação causal pretensamente científica das etiologias das nossas identidades. Há algo obscuro em nossas identidades que resistem a um imperativo de explicação – e é bom que seja assim e que reconheçamos isso. Só assim a psicologia e a medicina podem avançar.
Referências:
ELLIOT, Patricia. Engaging trans debates on gender variance: A feminist analysis. Sexualities, v. 12, n. 1, p. 5-32, 2009.
NELSON, Jamie Lindemann. Medicine and making sense of queer lives. Hastings Center Report, v. 44, n. s4, p. S12-S16, 2014.
SERANO, Julia. Excluded: Making Feminist and Queer Movements More Inclusive. Berkeley: Seal Press. 2013. (Edição e paginação Kindle).
SERANO, Julia. Whipping girl: A transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity. Berkeley: Seal Press. 2007.
Comentários
Uma resposta para “Despatologização e subjetividade trans: uma crítica da relação de causa e efeito”
muito interessante o artigo