Alerta de conteúdo: transfobia nos prints.
A recente declaração de Elliot Page se assumindo como uma pessoa transmasculina tem motivado repercussão no meio radfem. Vamos analisar alguns exemplos.
O print acima fala em “extermínio lésbico” ao referenciar o ato de Elliot Page de se assumir como trans. Ou seja, nesta visão, pessoas que são assignadas com o gênero feminino ao nascer e se identificarem no espectro da transmasculinidade irão “exterminar” as lésbicas, representando um perigo por meio de uma suposta “infiltração da lógica patriarcal nos nossos espaços”.
Diante de alegações tão fantásticas é possível nos perguntarmos se de fato os espaços reivindicados por essas radfems realmente coincidiam com aquilo que Elliot defende ou defenderia, mesmo antes de sua transição, para início de conversa. Toda essa representação megalomaníaca desta suposta ameaça nos permite concluir que tais representações digam muito mais a respeito da forma como essas radfems projetam os seus próprios medos nas pessoas trans do que propriamente das pessoas trans.
Já falei em um post sobre como as identidades transfemininas são vistas como ameaçadoras para o movimento feminista radical lésbico trans-excludente. Neste caso, as mulheres trans são vistas como invasoras e destruidoras dos espaços lésbicos. Caso queira uma análise exaustiva dessa questão recomendo a leitura da minha dissertação. Homens trans por sua vez são acusados de “traírem” o movimento do seu interior pelo fato de não se identificarem ou deixarem de se identificar como mulheres.
O print alega ainda que Page estaria passando pela cura gay. Ora, não há absolutamente nenhuma evidência de que Page teria passado por qualquer terapia de conversão de sexualidade. As notícias tão somente revelam que ele se assumiu como transmasculino. O que essas radfems fazem, portanto, é assumir que toda pessoa trans necessariamente transiciona porque teria sofrido uma espécie de terapia de conversão de sexualidade.
Esse tipo de alegação, como demonstra Ashley é completamente absurda, pois ela se baseia na ideia espúria de que a mera troca dos termos que usamos para designar a sexualidade de alguém implique que essa pessoa tenha sofrido conversão de sexualidade. Além disto, ignora completamente a existência da homossexualidade e bissexualidade entre as pessoas trans. O fato de passarmos a referenciar um homem trans que se atrai por mulheres, por exemplo, por meio de pronomes masculinos e deixarmos de referenciá-lo como uma mulher lésbica para referenciá-lo como um homem heterossexual não significa de maneira alguma que essa pessoa tenha sofrido uma forma de cura gay.
Ora, como esse homem trans hipotético teria sofrido uma conversão de sua sexualidade se a sua orientação permaneceu absolutamente inalterada? Para haver conversão de sexualidade não seria necessário haver… conversão de sexualidade? Ao contrário do que faz parecer a retórica radfem, nenhuma pessoa transgênera sofre a conversão de sua sexualidade pelo mero fato de se identificar como trans e passar a ter o seu gênero socialmente legitimado a partir da transição de gênero.
Outra alegação extraordinária diz respeito da ideia de “influência”: Page estaria influenciando as demais pessoas a serem… trans? Eu gostaria de saber o nexo causal que esse raciocínio supõe entre se assumir como trans e “influenciar” as demais pessoas a serem trans.
Desconheço qualquer tipo de evidência que pudesse corroborar a ideia de que a identidade de gênero de alguém possa ser influenciada pelo simples fato de sabermos que alguém assumiu determinada identidade. Esse tipo de alegação só pode fazer sentido no interior de um discurso que conceba previamente as identidades trans como indesejáveis e ilegítimas. Percebam também a total falta de paralelismo para com as identidades normativas, pois não parece ser verdadeira a crença recíproca de que alguém poderia ser influenciado a ser cisgênero pelo fato de saber que outra pessoa também é, por exemplo.
Todo o discurso conspiratório a respeito do “lobby trans” sequestrar/mutilar/apagar/*insira aqui uma ação de um plano maléfico* a identidade lésbica é condensado no ato individual de Elliot Page se assumir como trans. Nesta visão de mundo Elliot Page se assumir como trans é sinal de como o ativismo trans “machuca as mulheres”. O que deveria ser visto como uma vitória pessoal de Page passa a ser sinal de um plano diabólico para o apagamento da identidade lésbica.
Conseguem ver que a afirmação da transgeneridade de Elliot funciona como uma projeção imaginária da perda da própria identidade lésbica? As TERFs projetam a transição transmasculina como algo decorrente de violência e imposição, mas não uma violência e imposição qualquer, já que a percepção de que a transição de alguém possa ser ameaçadora faz sentido justamente porque essas TERFs se identificam profundamente com imagem de Elliot pré-transição (isto é, como uma suposta mulher lésbica).
É precisamente esta identificação com a figura da pré-transição de Page que permite com que a transmasculinidade seja vista como particularmente ameaçadora: “sou parecida com Page; Page foi seduzida e iludida pela transmasculinidade, logo também estou predisposta ao mesmo tipo de sedução e ilusão”. Percebam como a ameaça não diz respeito apenas a ilusão ou engano a respeito da própria identidade de gênero, mas também de ser seduzida a acreditar que se é uma pessoa trans em razão das normas de gênero.
Falar em sedução aqui não é fortuito. O problema para as radfems não é que alguém seja meramente “convertido” violentamente a uma identidade trans. O perigo reside no fato de uma pessoa ser “seduzida” pelos supostos privilégios obtidos ao se encaixar em uma normatividade de gênero que a transgeneridade proporcionaria – e consentir com isso, se tornando “cúmplice” das normas de gênero.
À medida em que TERFs estabelecem que para *elas* a transmasculinidade é algo ameaçador, prejudicial, alienante e perigosamente sedutor elas esperam que isso seja verdadeiro também para as próprias pessoas transmasculinas – sob a crença de que compartilham a mesma necessidade de ojeriza da transmasculinidade em função terem a mesma história de “socialização feminina” ou “biologia”. Assim, Elliot assumir um novo nome, utilizar novos pronomes, vir a público assumir sua identidade transmasculina, é insuportável para elas, porque imaginariamente é como se elas tivessem que fazer o luto em relação a imagem que perderam.
A problemática da ilusão, do autoengano, da cumplicidade com as normas de gênero neste caso é exclusiva da vivência de pessoas cisgêneras. Trata-se de uma projeção das inseguranças das próprias pessoas cis a respeito de suas identidades sobre as pessoas trans. A insegurança identitária de pessoas cis produz como efeito a vilanização das pessoas trans como normativas, alienadas, ingênuas, iludidas, etc. A afirmação de uma identidade trans para uma pessoa trans ao contrário de representar conformidade ou cumplicidade com normas de gênero significa resistência à cisnormatividade.
Vale lembrar que deixar de transicionar também é uma forma violenta e impositiva para você se encaixar na norma de gênero. Muita gente trans acaba adiando a transição porque caso elas comecem a transição sofrerão com a ameaça de serem rejeitadas em todos os espaços possíveis – família, escola, trabalho, igreja, etc. A pressão normativa não diz respeito apenas para a passabilidade cisgênera se estamos falando de pessoas trans. A pressão normativa se expressa sobretudo na negação da possibilidade de transicionar sem sofrer violência.
Vamos agora para mais um print:
Pessoas trans que só assumem uma identidade transgênera a partir da idade adulta não estão “invisibilizando” as pessoas transgêneras que se identificam como trans em idades mais jovens e/ou que vivenciam inconformidade de gênero desde a infância e/ou tem a autoconsciência de serem trans desde pequenas. Pessoas trans que transicionam adultas e não tinham consciência de que eram trans na infância e adolescência estão apenas vivendo suas vidas – e olha que surpresa, suas identidades são tão legítimas quanto as identidades das pessoas trans que sempre souberam que eram trans.
Não existe antagonismo ou contradição entre as pessoas trans que “sempre sabiam” daquelas que só vieram a se compreender trans em uma fase mais avançada nas suas trajetórias de vida. Todas as narrativas trans são válidas. Querer produzir esse antagonismo artificial entre as pessoas trans não deveria fazer o menor sentido – aliás, essa tentativa parte justamente de pessoas transfóbicas.
Pessoas trans que transicionam mais tardiamente não são pessoas trans “falsas” e pessoas que sempre souberam que eram trans não são as “verdadeiras”. Toda identidade diz respeito a trajetória de vida de uma pessoa, ou seja, não tem como uma identidade ser “falsa” em comparação às supostas identidades “verdadeiras”.
Isso não significa ignorar que pessoas que transicionam na vida adulta e/ou mais tardiamente possam ter vivências diferentes das pessoas trans que transicionam na infância, adolescência e/ou expressaram um gênero inconforme desde crianças. Pessoas que transicionam na vida adulta podem não experienciar situações de transfobia que decorreriam do fato de serem vistas publicamente como trans, mas essas mesmas pessoas podem passar anos experienciando as violências psíquicas que decorrem de viver no armário, por exemplo, e ainda estarem ainda mais expostas a transfobia quando decidirem transicionar, pois justamente elas serão deslegitimadas em suas identidades de gênero porque se assumiram trans em uma idade mais avançada.
Conseguem perceber que as situações concretas são mais complexas do que simplesmente ter ou não ter um privilégio de forma absoluta? Uma pessoa pode ser privilegiada em um aspecto, mas em outro estar exposta a uma situação de vulnerabilidade. As pessoas trans, vejam só, não possuem as mesmas vivências, inclusive quando estamos falando de um mesmo grupo quanto a idade com que tiveram consciência de serem trans: uma pessoa trans que teve apoio familiar em comparação aquela que não teve, por exemplo.
Não deveria ser difícil entendermos porque muitas pessoas têm dificuldades e percalços em suas tomadas de consciência a respeito da própria identidade transgênera na medida em que vivemos em uma sociedade que não apenas é incapaz de conceber a legitimidade de uma identidade trans como as estigmatiza profundamente.
Mesmo em um cenário ideal, em uma sociedade que respeitasse as nossas identidades, é razoável supor que nem todas as pessoas vão ter a mesma experiência em relação a tomada de consciência da própria identidade. Supondo um mundo ideal, continuarão a existir aquelas pessoas que vão dizer que sempre souberam e aquelas que só souberam a partir de um determinado tempo de suas trajetórias de vida, e está tudo certo. Vão existir aquelas que dizem que a sua expressão de gênero sempre foi algo espontâneo e autêntico, e outras vão dizer que só a partir de determinado ponto em suas trajetórias de vida suas expressões se tornaram espontâneas e autênticas. Parem de supor narrativas universais, homogêneas e lineares a respeito de nossas identidades.
Leia também:
Este É Um Longo Post Sobre TERFs.
Meu Nome É Thomas E Eu Não Me Importo Com Suas Teorias Feministas.
Comentários
2 respostas para “Elliot Page e o radfem: precisamos falar sobre isso”
“a identidade de gênero de alguém possa ser influenciada pelo simples fato de sabermos que alguém assumiu determinada identidade”
Recortei esse trecho porque me fez estabelecer um paralelo com posturas homofóbicas que são primárias.
Lembrou-me os debates em torno do falso “kit gay” nas escolas sob o absurdo de que poderia “influenciar crianças a gostarem de pessoas do mesmo sexo”. O discurso se repetiu, em outro contexto?
Com certeza Tha, bem observado.