Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
Reconhecer-se cisgênero/a é o ponto de partida para a desnaturalização da cisgeneridade.
O reconhecimento não se resume em dizer “eu sou cis”, mas em refletir sobre como se deu o processo de designação de gênero antes do nascimento (durante o ultrassom), como se aderiu aos biocódigos de masculinidade e feminilidade, como se dá o processo mesmo de aquisição do gênero, ou seja, como se constitui o gênero. É importante ressaltar que compreender não é concordar. Assim, compreender como alguém se torna cisgênero não significa concordar com a cisgeneridade em sua totalidade. Daí ser equivocada a colocação de muitas pessoas, geralmente “feministas” trans-excludentes, de que “ah, mas eu não me identifico com o gênero que foi designado a mim no nascimento e mesmo assim não sou trans”. É equivocada porque a cisgeneridade pressupõe uma zona periférica dentro do seu próprio espectro como forma de ter um certo controle sobre a constituição dos corpos [1], determinando inclusive suas possíveis transgressões.
É por esse motivo que ainda lidamos com um sistema social que afirma o dimorfismo sexual, o que condiciona o percurso de pessoas trans a um binarismo da ordem da repetição. Logo, quando uma “feminista” trans-excludente diz que pessoas trans reforçam o binarismo de gênero, o que ela faz é exatamente atuar de maneira policialesca, fiscalizando a possibilidade de sujeitos transgredirem a cisheteronormatividade, garantindo que não cruzarão a fronteira, que permanecerão numa condição de confinamento de gênero. Focando nessa dinâmica, é possível compreender o surgimento e aumento de “feministas” trans-excludentes em paralelo à vigilância em fronteiras neste momento em que tem aumentado o número de migrantes. É como se essas “feministas” e o ICE (Immigration and Customs Enforcement) nos E.U.A [2] possuíssem uma relação de parentesco. A exposição de nomes civis de pessoas trans que ainda não retificaram seus documentos ou o nome morto [3] de pessoas trans se assemelha à deportação de imigrantes indocumentados, pois acentua a vulnerabilidade dessas pessoas via constrangimento (“essa mulher não é uma de nós, é um homem” poderia muito bem ser trocado por “essa pessoa não é norte-americana, ela é mexicana”).
Simone de Beauvoir havia escrito que “não se nasce mulher, torna-se”. Cabe então discernir sobre como nos tornamos os homens e mulheres que somos, e não em dizer quase que compulsoriamente “o gênero é construção social”. Talvez nesse processo você transite dum gênero a outro. Falar que “o gênero é uma construção social” ou que é imposto é deliberadamente fácil, qualquer pessoa pode fazê-lo, incluso de maneira oportuna. “Abraçar os nosso demônios”, identificar os fantasmas que nos sussurram ao pé do ouvido, lidar com o estranhamento, é aí que reside o desafio, pois exige de nós que desmantelemos aquilo que acreditamos ser nosso, substancialmente nosso, algo indissociável de nós, que é a nossa personalidade, o popular “jeito”.
O importante em refletir sobre como nos tornamos o que somos, é que notamos que essa constituição não ocorre de maneira simétrica, é incluso ruidosa, há algumas falhas aqui, outras ali. O olhar para si mesmo, neste caso, tem a ver com o incômodo, não com a acomodação. Esse olhar para si mesmo exige do sujeito um deslocamento, uma eumetria (boa distância) de si mesmo, como se estivesse diante de um espelho. Como isso é possível? A partir duma escuta, da afinação do nosso campo de audibilidade, de forma que possamos dessintonizar com a frequência pop que nos coordena.
Não somos designados/as homens e mulheres por conta de nossos genitais. A dinâmica é outra, fundamentada na prescrição: recebemos a designação “homem” ou “mulher” para que os nossos órgãos genitais se tornem órgãos sexuais, passando a operar em prol dum sistema econômico, o que torna a nossa capacidade de agir economicamente demarcada pelo capitalismo. O pênis e a vagina assumem funções específicas, e então o corpo passa a ser elaborado, no sentido de que realmente produzimos nosso corpos via trabalho. Aqui é preciso tomar cuidado ao fazer uso da palavra “alienação”, pois ela pode implicar a noção equivocada de um corpo natural que sofreu um engano, e que portanto se deve conciliar este corpo com sua natureza corrompida. Não, o intuito não é esse. O intuito aqui é evidenciar, tornar visível, a ficcionalidade do corpo, e não retornar a um corpo idealizado, o que nos aproximaria do mito bíblico de Adão e Eva e o pecado original. Todo corpo que surja, nas condições de possibilidade atuais, será ideologizado, ou seja, confeccionado de modo a garantir a dinâmica dum imaginário social conservador. Isso significa que estamos fadadas/os ao sexismo? Não. Isso significa que, não só temos que refletir sobre a transgeneridade, como também sobre a cisgeneridade.
“A categoria ‘mulher’ e a categoria ‘homem’ são categorias políticas e econômicas e, portanto, não são eternas” (Monique Wittig, 1992).
“Quê é o homem? Nada. Quê é a mulher? Nada. Quê é a humanidade? Tudo!” (Joseph Déjacque).
[1] Faço uso das aspas porque esse movimento está mais para um movimento feminino de direita.
[2] Utilizo os E.U.A. como referência porque a maioria das teóricas desse movimento são estadunidenses, e também é lá que se encontra o WoLF (Women’s Liberation Front / movimento de libertação das mulheres), que tem se alinhado com a extrema direita (supremacismo branco) como forma de vetar o direito de ir e vir de pessoas trans.
[3] “Nome morto” se refere ao nome anterior/designado ao nascimento de uma pessoa trans antes da retificação/atualização do seu documento com o novo nome.
Imagem: G1.