Ouvindo entrevistas com profissionais psi, como a recentemente publicada “Disforia de gênero”, pelo canal Lado Bi, que atendem pessoas trans só posso concluir: é totalmente insustentável ao menos DIALOGAR com esses profissionais a partir do momento que eu sou transfeminista. Muito fácil falar de saúde pra transexuais. Quero ouvir falar sobre saúde integral para travestis, para pessoas não binárias, para pessoas de gêneros não inteligíveis pelo cistema. Para aquelas pessoas cuja disforia destoa da patologia com sentido (transexualidade), como pontuei no meu texto “Disforia: Bonecas Matrioshkas ou Fita de Möbius“. Isso é falar sobre alteridade. Aqui vai a crítica a este modelo biomédico acerca do atendimento às nossas demandas, o modelo das bonecas russas. Espero que estes profissionais passem a pensar um outro modelo, pensado através fita de Möbius.
É impossível dialogar com esses profissionais porque simplesmente partimos de pressupostos sobre gênero completamente diferentes. É impossível dialogar com profissionais psi que falam “nascido homem ou mulher”, “corpo de homem ou mulher”, “corpo errado”, “sexo biológico”, “não se sentem pertencentes ao próprio corpo”, “papel de gênero discordante com o sexo biológico”, “as meninas ficam mais emotivas com estrógeno”, “um trans”, “atendimento para transexuais” (e as travestis?) … são tantas coisas, tantos problemas, tantas imprecisões conceituais decorrentes do cissexismo e essencialismos. Não apenas pelo uso de determinados termos, mas dos sentidos que emergem nos seus discursos, atestados em suas práticas. E aí quando eu vou precisar de atendimento a saúde, como que eu faço? Como eu faço pra ter atendimento a saúde se a comunicação nem ao menos é possível? Vou ter que me “fazer entender” e sucumbir ao discurso cissexista?
A psicóloga Maya Foigel diz que “não dá conta” do atendimento às travestis em seu programa. Não dá conta porquê? Por que travesti é errada, incompreensível? Pois é, isso é transfobia e travestifobia. Ela disse que “encaminha” travestis pra algum lugar. Que lugar é esse? Um lugar ainda mais precarizado, com mais filas de espera? Um não-lugar mais marginal? O que tem de essencialmente diferente entre a demanda de uma travesti e de uma transexual? Aliás, não deveria ser justamente mais simples a demanda de travestis (considerando o senso comum que travestis não demandam a cirurgia)? A mesma psicóloga que diz que cada pessoa é única, “cada caso é um caso”. Estranho que o caso das travestis – preciso lembrar que cada travesti é também uma pessoa “única” enquanto indivíduo? – foi exceção. Por que será? Quais saberes funcionam de forma tão subterrânea que garantem a exclusão de determinados sujeitos do acesso à direitos que deveriam ser universais? Por que será que a priori é vetada a participação de travestis nestes programas sendo que não há nada que defina a priori uma travesti (e mesmo uma pessoa transexual)? Qual é a necessidade de separar sujeitos a partir de critérios tidos como essenciais tão somente através do desejo por uma cirurgia (e ignorando que a demanda real vai além dela?)?
Nem preciso dizer sobre os “homossexuais homofóbicos que querem ser trans”. E olha que surpreendentemente o pessoal usou o termo cisgênero. Outra coisa completamente incompatível é a forma como se põe a questão da sexualidade. O discurso sobre a orientação sexual costuma ser calcado na evidência da matriz cisgênera. Um verdeiro show e labirinto de mil erros. Se o discurso pretende desconstruir o falogocentrismo ele precisa assumir na prática – prática médica e psicológica também! – que determinados termos não funcionam como mera transparência da linguagem.
Percebam como todo programa gira em torno da cirurgia. Todas nossas questões são postas por esses profissionais como se todas as pessoas trans (legítimas) quisessem a cirurgia. Esquecem que atendimento a saúde pode envolver outras questões como hormonioterapia, mas elas se esquecem disso né. Aliás, esquecem de determinados sujeitos, das travestis. Quem chora e quem pensa nas travestis? Quem pensa na saúde da travesti, que medida pública, qual hospital? Os entrevistados falam tanto sobre ter “cautela” mas são os primeiros a se focar unicamente nesta questão, a transformar toda a “disforia de gênero” como um fenômeno que “normalmente” ou “naturalmente” desemboca na necessidade cirúrgica. A própria política de “atendimento” desvela, em suas práticas, este discurso. Convidaria a estes profissionais a lerem o sucinto e preciso texto da página Sasha, the lioness, disponível no facebook.
Eis os inúmeros paradoxos da perspectiva psicologista que trata a transgeneridade. Da universalidade ao atendimento à exclusão sutil de sujeitos tidos como inadequados, as travestis. Do suposto atendimento particular às individualidades às abstrações nosológicas transmisóginas sobre o mito da transexualidade como doença. O núcleo duro do sujeito biopsicológico em seus efeitos discursivos.
Sem contar que esse pessoal entrevistado nem ao menos sabe do que se trata a despatologização e a importância da lei João W. Nery. Despatologização não é falta de acompanhamento médico e psicológico. Despatologização é respeito a autonomia e auto determinação. Despatologização, como disse no meu texto “O que é um laudo?” é compreender os sujeitos transgêneros não como objetos passíveis de apreensão fenomenológica pelo discurso da doença da transexualidade. Sujeitos possuem agência, liberdade de escolha frente suas situações de existência.
Comentários
3 respostas para “Nota de repúdio à entrevista “Disforia de gênero” do canal Lado Bi”
Olá!
Primeiramente gostaríamos de colocar que acompanhamos o blog de vocês, é muito interessante.
Entendemos que alguns pontos da entrevista causaram mal entendidos sobre o nosso trabalho e papel como profissionais na área, portanto decidimos escrever pra vocês.
Nosso ambulatório no Hospital das Clínicas é especificamente voltado para a população trans e quem nos procura busca cirurgias. Isso porque estamos inseridos no Sistema Único de Saúde e os pacientes que nos procuram lá buscam as cirurgias através do SUS. O programa propôs uma conversa sobre a nossa prática no HC, por isso falamos bastante de como funciona esse processo hoje, por lei. Em momento algum afirmamos ser essa a forma correta, ou emitimos qualquer opinião pessoal sobre o tema.
Infelizmente o Sistema tem milhares de falhas e uma delas é não termos condições de atender transexuais que buscam atendimento sem necessariamente a cirurgia (hormonal, psicológico, ou qualquer outro…) ou travestis, como mencionado. Não se trata de escolha, mas sim de precariedade de Sistema, falta de políticas públicas abrangentes e consistentes, falta de profissionais qualificados e falta de verba para contratação de novos profissionais para um atendimento de qualidade e sem demoras. A fim de corrigir tais falhas, lutamos diariamente para que o SUS cumpra com a universalidade que promete.
Entendemos a lei João Nery e inclusive já tivemos o prazer de conversá-la com ele mesmo.
A idéia central do programa não era discutir a despatologização mas sim relatar a nossa prática dentro de uma instituição médica, que realiza tratamento hormonal e cirúrgico a transexuais, por isso os termos usados na medicina, o que não quer dizer patologizantes quanto às identidades trans.
Por fim, consideramos importante enfatizar o respeito que temos por qualquer pessoa que procure nosso serviço, procurando sempre priorizar a saúde integral daquele paciente, seja ele quem for, acolhendo, orientando, encaminhando para os serviços que conhecemos mais adequados para a demanda daquela pessoa.
Muito obrigado pelo espaço, nos colocamos à disposição para qualquer dúvida ou diálogos sobre o tema.
Daniel Mori e Maya Foigel
Oi Maya. Agradeço o retorno assim como a sua abertura ao diálogo acerca das questões que pontuei na nota. Acho muito importante o fato de você denunciar a grave situação de descaso que o serviço público enfrenta em relação a falta de recursos financeiros e de profissionais capacitados assim como o seu comprometimento em relação a luta para que o SUS de fato garanta atendimento médico integral e universal de qualidade. No entanto, não pude deixar de notar certos silenciamentos acerca de algumas questões específicas.
Sou da posição de que não basta camuflar o conflito no discurso para que ele deixe de existir da vida real. Não acredito que a fabricação de consenso seja capaz de resolver efetivamente os problemas. Aliás, se não acreditasse na importância de se falar abertamente dos conflitos e contradições de inúmeras questões políticas, nem ao menos escreveria para este blog. Com isso quero dizer que acharia muito mais honesto de sua parte admitir a realidade que você mesma pontuou em seu cometário: o HC da USP não oferece e não tem possibilidade de oferecer acolhimento e atendimento integral, universal e de qualidade. Acho importante pontuar isso de antemão, pois caso contrário correríamos no risco de apagamento de certos conflitos reais. Digo isso levando em consideração que a exclusão de determinadas pessoas do acesso a saúde (como as travestis) não poder ser explicada tão somente pelo argumento de falta de recursos. Há nitidamente algum saber que funciona nas práticas médicas que produz este tipo de exclusão deliberadamente.
Oi Bia. Mais uma vez te agradeço o espaço para diálogo. Concordo inteiramente com você quando afirma que “não basta camuflar o conflito no discurso para que ele deixe de existir da vida real”. O ambulatório em que eu sou colaboradora dentro do HC realmente não consegue oferecer acolhimento e atendimento integral, universal e de qualidade para todos os pacientes que gostaríamos. As faltas são muitas, não só de recursos. E te digo isso porque para nós é também muito frustrante não poder extender nossa prática para além de tantos protocolos e tanta demora, marca central do sistema de saúde hoje. O que posso afirmar é que os profissionais que trabalham comigo buscam, semanalmente, tornar a integralidade de atendimento uma realidade. Imagino que nessa luta, estamos todos unidos. Sem exclusões diagnósticas, rótulos ou partidarismos. Tenho certeza que seus questionamentos só nos enriquece nesse objetivo.