Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Vladimir Safatle escreveu recentemente sobre o livro de Elisabeth Roudinesco “O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias”. O autor faz uma crítica relevante à forma como Roudinesco mobiliza a noção de “identitarismo”, enfatizando as razões concretas pelas quais os ditos grupos “identitários” estabelecem uma relação complexa com a ideia de universalidade – para dizer, aqui de forma correta, que Roudinesco entende a universalidade de forma equivocada em sua crítica ao dito “identitarismo”, pois ela teria sido incapaz de compreender os movimentos pelos quais as posições normativas de raça e religiosidade, por exemplo, se lançam enquanto pretensamente neutras e “universais”. Contudo, o ponto em que Safatle erra é precisamente no momento em que concorda com Roudinesco a respeito da saúde dos jovens transgêneros.
Safatle diz que haveria “interesse real” no “problema da autorização de tratamento hormonal para transição de gênero em crianças e adolescentes menores” emendando ainda que “uma sociedade que entende que o consentimento de adolescentes de 14 anos a relações sexuais com pessoas mais velhas não tem valor algum e que, no entanto, sua decisão de se submeter a uma cirurgia de transição de gênero deve ser respeitada tem uma contradição que deveria ser melhor pensada“. Nestes dois pequenos trechos existem mais erros grosseiros e subentendidos falaciosos do que proposições com qualquer lastro na realidade.
Safatle ignora completamente os reais protocolos a respeito do acesso a recursos de afirmação de gênero para crianças e adolescentes, tal como o que preconiza a Endocrine Society e outras associações profissionais reconhecidas: apenas adolescentes, e não crianças pré-púberes, acessam quaisquer tipos alterações corporais como a hormonização cruzada ou o bloqueio puberal. Ora, falar a respeito então de tratamento hormonal para crianças já é um erro que é “convenientemente” cometido por discursos anti-trans mal-intencionados para retratar equivocadamente os recursos de afirmação de gênero como algo flagrantemente precipitado e desnecessariamente perigoso.
As evidências a respeito dos benefícios para a saúde mental de jovens do acesso a recursos de afirmação de gênero quando desejados são inequívocas. Isso inclui o a reposição hormonal para adolescentes trans. A resistência ao acesso a alterações corporais para jovens trans só pode ser entendida como resultado da cisnormatividade: corpos trans são vistos como mutilados enquanto que corpos cisgêneros são simplesmente tidos como o parâmetro subjacente a partir do qual uma noção normativa e excludente de saúde é medida e conceituada.
É por isso que se pode implicitamente assumir neste caso que 99% dos jovens devem ser concretamente prejudicados em nome do 1% que eventualmente irá se arrepender. Trata-se de uma “lógica” que não é aplicada em nenhum campo da medicina, a não ser quando falamos sobre os corpos de pessoas trans. De fato, as taxas de arrependimento em relação a procedimentos de alteração corporal por adolescentes e adultos trans giram em torno de 1%.
Um dos erros mais recorrentes feitos por discursos anti-trans atuais é representar a posição de afirmação de gênero como uma posição que defenderia uma adequação normativa de corpos em razão da defesa de que esses recursos são benéficos.
Ora, aqui é preciso deixar bem claro: defender o acesso aos recursos comprovadamente benéficos de alteração corporal para jovens que os desejam não significa entrar em antagonismo com as necessidades e interesses de jovens trans e/ou de gênero diverso que não desejam acessá-los ou que não puderam acessá-los.
A construção de um antagonismo entre os interesses/necessidades de pessoas trans que desejam e realizam alterações corporais e os interesses/necessidades de todos os demais sujeitos de gênero diverso que não desejam fazer alterações corporais ou que ainda não realizaram é simplesmente falsa pois não existe contradição entre lutar pelos direitos e necessidades de ambos os grupos. Mesmo quando falamos de pessoas que destransicionaram e/ou se arrependeram das alterações corporais não há real antagonismo, e sim pânico moral contemporâneo para articulação do neofascismo (de fato, escrevi anteriormente sobre isso). Acreditar no contrário é o que fazem insistentemente o movimento atual TERF/”gender critical” em aliança com a extrema-direita por meio da reiteração da ideia de que o movimento trans “reforça estereótipos de gênero” e “mutilação dos corpos”.
Retomando a noção de contradição: não há realmente, ao contrário do que Safatle afirma, nenhuma contradição entre o fato da pedofilia ser rejeitada socialmente e criminalizada e jovens menores de idade acessarem recursos de afirmação de gênero comprovadamente benéficos. O que Safatle está fazendo aqui é capcioso, pois ele acaba por projetar como expectativa, mesmo de maneira implícita, o atrelamento entre aceitação social da pedofilia e as alterações corporais por jovens trans: só poderíamos respeitar a decisão de um jovem de se submeter a uma cirurgia de transição caso entendêssemos que este mesmo jovem tenha capacidade para declarar consentimento a ter uma relação sexual.
Quando explicitamos essa analogia falsa e implícita percebemos quão equivocada, mistificadora e anti-trans ela de fato é: uma discussão sobre a capacidade de consentimento de jovens de 14 anos para se relacionarem sexualmente não tem absolutamente nada a dizer sobre uma eventual discussão sobre os benefícios e a ética do acesso a cuidados de afirmação de gênero para jovens de 14 anos. Não há nenhuma justificativa válida apresentada para pensarmos ou supormos o contrário. Ter que escrever sobre isso me leva a reconhecer que não é de hoje que o pensamento cisgênero utiliza-se de falsas analogias para estigmatizar corpos e identidades trans, tal como ocorre usualmente com a noção de “transracialismo” (“se não é possível um branco se identificar como um negro, logo, um homem não deveria poder se identificar como mulher”; “transgeneridade é análoga ao transracialismo”).
Para entender melhor a saúde dos jovens transgêneros recomendo a leitura atenta dos seguintes textos:
3 Verdades mais importantes sobre a saúde da população trans.
Comentários
Uma resposta para “O ponto em que Vladimir Safatle está errado sobre E. Roudinesco: sobre jovens trans”
Safatle demonstra que não sabe ou finge que não sabe a diferença entre identidade e sexo para defender seu argumento. E não explicita que todo arrependimento nos processos de afirmação de gênero são associados (devidos ou causados) à opressão social sobre a pessoa Transgênera.