Recentemente, em um encontro no IEL-UNICAMP, após a apresentação de Diego Jiquilin e Bia Bagagli apontando as similaridades entre o discurso sexista e o cissexista atentando para a emergência da utilização dos termos cisgênero e cissexismo para uma aplicação crítica na mídia (que incluiu algumas imagens publicitárias e notícias veiculadas por portais “LGBT”), uma pessoa levantou a questão da divisão cis/trans* como possivelmente discriminatória, visto que muitas vezes temos a impressão que um dos objetivos dos discursos anti-discriminação de raça, classe e gênero seria a igualdade de sujeitos e consequentemente a não-discriminação.
Decorre que a adoção do termo cis a meu ver tem objetivos políticos de visibilidade trans* e também possui caráter de denúncia dos vários discursos que, veiculados acriticamente, reproduzem discriminações contra pessoa trans*.
No entanto, aqui temos dois tipos de conceito de discriminação:
1) O tipo que visa discriminar indivíduos deslegitimando e desumanizando suas condições como sujeitos sociais e como sujeitos históricos, apagando suas subjetividades, necessidades e excluindo-os dos espaços sociais por meio de discursos e práticas institucionalizadas as quais visam manter esses sujeitos sempre à margem, efetuando assim a manutenção do poder dos sujeitos privilegiados que encontram-se no topo das hierarquias sociais e;
2) O tipo que visa dividir para denunciar as diferenças existentes que caracterizam aquele sujeito como “diferente” justamente nos termos de suas necessidades, historicidades e posição social.
Desse modo, a divisão cis/trans* tem um objetivo político emancipatório: é necessário revelar as necessidades específicas das pessoas trans*, suas histórias, suas posições sociais, para que seja percebido que mulheres trans*, por exemplo, não possuem o mesmo acesso/tratamento que mulheres cis. Muitas feministas negras já apontaram o fato do feminismo ser branco, pois não leva em conta a interseção raça-gênero, cujas particularidades não podem ser descartadas, visto que uma mulher cis negra não teria o mesmo acesso social que uma branca.
Do mesmo modo, as mulheres trans* não possuem igualdade de oportunidade e além de sofrerem sexismo, também sofrem cissexismo/transfobia. Quando falamos em pesquisas do tipo “mulheres ganham menos que homens”, “% de morte de mulheres por violência doméstica é X” etc., sobre quais mulheres estamos falando? As brancas? As negras? As de classe média? As trans*?
É nesse sentido que a diferenciação cis/trans* é necessária, para não englobar e unificar a categoria de mulher apagando as particularidades/interseções que podem dar outro caráter à discriminação sexista, uma vez que o sexismo não age de forma universal em relação a todas as mulheres, pois não existe uma mulher universal. Não significa que essa diferenciação tenha que ser estrita e nem que haja dentro dela juízos de valor deslegitimadores (por ex. o velho discurso de mulheres cis serem mais “reais” do que mulheres trans*), mas significa que ser mulher E trans* nessa sociedade, importa, já que se queremos justiça social para todxs, devemos reconhecer as diferenças e resgatar os sujeitos postos à margem de acordo. As políticas de cotas, por exemplo, seguem essa linha “é necessário diferenciar para verificar a falsa simetria no discurso da igualdade e resgatar os sujeitos postos à margem socialmente”. Não, não somos todxs iguais, somos diferentes, porém isso é válido, e reconhecer isso é o que faz com que de fato estejamos nos igualando de alguma forma.
Uma das críticas feitas ao movimento feminista no fim dos anos 80 leva em conta que o objetivo do feminismo em delimitar a categoria de mulher como universal e homogênea estava fadado ao fracasso, pois a tal “categoria de mulher” era produzida pelo mesmo mecanismo que buscava se emancipar juridicamente excluindo no processo muitas particularidades que lhe custariam caro. Ou seja, não se podia objetivar emancipação política utilizando uma representação universal de categoria de mulher inexistente, pois “ser mulher” era um conceito tão subjetivo e com tantas interseções que não havia como ao mesmo tempo emancipar politicamente todas as mulheres; com efeito, não se poderia emancipar nenhuma.
Esse conceito pode ser aplicado justamente na adoção de uma política transfeminista. Transfeminista, porque desde aquela época até hoje o feminismo se apoia em um discurso binarista dimórfico que exclui mulheres e homens trans* de seus discursos, mesmo que na prática xs aceitem em seus grupos. Tenho percebido, porém, que para que pessoas trans* entrem na “pauta feminista” é necessário sempre insistir e por muitas vezes literalmente gritar, para serem ouvidas dentro desses grupos. Além disso, pautado no dimorfismo, o feminismo não deu conta de representar (e muitas vezes aceitar) a existência de mulheres com pênis e/ou com corpos que não são conformes ao binário (não-cis), mulheres que se sentem bem com tal genital à revelia do discurso médico patologizador guiado por documentos cujo único objetivo é regular e reproduzir o binarismo e dimorfismo de gênero.
A falha do feminismo nesse aspecto, somada com a necessidade urgente da desconstrução de conceitos machistas internalizados por pessoas trans* – herança do velho machismo que busca regular o que é “ser mulher” o que uma “mulher de verdade” deve fazer e como deve agir para então ser considerada “mulher”, fez com que muitas pessoas trans* buscassem uma forma de empoderamento corporal/social/interno que mantivesse uma forte ligação com o feminismo, mas que fosse de certa forma “exclusivo” para pessoas trans*.
Atualmente os corpos trans* em todas as esferas sociais continuam sendo ojerizados, estranhados, evitados. A existência fora do (suposto) binário morfológico é visto como uma execração, uma aberração. As configurações de corpos distintas estão sempre à margem e motivam muitos crimes transfóbicos nos quais por muitas vezes essas pessoas são desfiguradas ou tem seus genitais mutilados. É a transmisoginia operando para regular as configurações “naturais” de corpos transformando todos os sujeitos não conformes em abjeções.
O transfeminismo busca empoderar pessoas trans* e não-cis em seus corpos, sejam/estejam eles conformes ou não conformes. O transfeminismo busca empoderar as pessoas trans* em suas escolhas, sejam elas pelas cirurgias as quais julgarem adequadas, ou pela escolha de manter o corpo como quiser, ao passo que a modificação corporal não é premissa para a identificação de gênero.
O Transfeminismo busca empoderar todas as sexualidades das pessoas trans*, sejam elas heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais, assexuais, e/ou qualquer outra como quiserem se identificar.
O Transfeminismo busca empoderar todos os tipos de corpos, sejam eles gordos, magros, altos, baixos, com ou sem deficiências, pois nenhum tipo de corpo é ou deveria ser premissa para identificação de gênero.
Dessa forma, em termos gerais, o transfeminismo busca empoderar as pessoas trans* postas à margem, devolvendo sua humanidade negada a cada discurso e prática cissexista/transfóbica.