Texto de Helena Agalenéa.
Ultimamente tenho lido e ouvido com muita força esse discurso com raízes bem transfóbicas sobre as mulheres trans deterem privilégios de homens cis antes de se assumirem trans e começarem sua transição.
Primeiro que essas pessoas levam em conta não a identidade de uma pessoa trans e toda sua subjetividade – mas somente a sua genitália, acreditando que fomos homens cis por determinado tempo e, então, num passe de mágica, bum… Somos mulheres.
Bom, primeiro que sempre fui extremamente ridicularizada, desde a infância, por não me encaixar dentro de padrões masculinos. Os espaços que essas pessoas transfóbicas dizem que eu podia “pertencer” que mulheres não podiam, bem… Eu era forçada a esses espaços, visivelmente não me encaixava, e daí era ridicularizada e agredida por isso. Vestiários masculinos? Tortura. Rodinha de amigos homens? Tortura. Sempre me acharam burra ou aparecida demais, sempre questionaram meu trabalho por não ser masculina ou por não agir feito homem. Sempre cortaram minhas falas, passavam a mão em mim porque eu “queria ser tratada igual mulherzinha”, na rua eu não sofria assédio, mas xingamentos vinham. E na real que sofri bastante assédio, desde a infância, principalmente duma “criança” seis anos mais velha me fazendo tocá-la e depois me ensinando que aquilo era “errado” e eu não devia contar pra ninguém. Eu tinha 7 anos. Transei ou toquei muito cara hetero na vida que me implorava segredo porque, “não sendo mulher de verdade”, eu só servia pra isso: ser um depósito de porra. Cadê meus privilégios de homem cis?
Toda a construção da minha subjetividade também foi de acordo com o que a sociedade empurrava do que era ser mulher. E eu, pra compensar o fato de “não ser mulher de verdade”, tentava sempre compensar sendo tudo aquilo que “uma boa mulher deveria ser”.
E daí aprendi a: sempre dizer sim, sempre estar por perto, sempre perdoar, amar incondicionalmente, nunca dizer o que eu sinto, me subjugar por homem, viver por causa de homem, esperar pelo príncipe encantado, ser puta na cama e recatada na mesa ou, ainda, tentar a todo custo provar que eu era “melhor de cama que as outras”, me fez sempre buscar aprovação masculina, querer ser amiga dos caras pra ser vista como descolada, me fez aprender a fingir prazer, a inventar prazer no sexo, a não dizer que não tô gostando, a achar que tudo bem um cara socar o pau na minha goela, achar que tudo bem um cara socar o pau no meu cu e depois dizer que “a gente nem transou”, aprender a engolir meu sentimentalismo (mesmo ele sendo completamente introjetado), aprendi também a odiar meu corpo, a demorar pra saber o que me dava prazer e usar o clichê “eu gosto só de dar prazer” – pra negligenciar o meu gozo – e eu fazia isso em relação a homens gays antes da minha transição também, ok?
E é por isso que me identifico com minhas manas mulheres – porque somos mulheres e, mesmo sem a gente querer, nos foi empurrado tudo isso. Eu não “escolhi” ser mulher por achar “ser mulher legal” como tem gente que pensa. Eu também quero desconstruir o que é ser mulher, porque estou cansada de sofrer assédio na rua, de TER que ser bonita, de ter minha inteligência questionada, cara, isso cansa muito.
E eu também sempre fui muito sentimental e sempre busquei viver um amor. Esses dias terminei de ler um livro da Clara Averbuck chamado Toureando o Diabo, e mano… Percebi que eu vivi a vida inteira pra homem, buscando homem, sempre em busca de um amor. E sempre projetei, sempre tive paixões ilusórias, sempre que um cara me olhava eu pensava “agora vai”. E dai ficava me raspando no banho antes de encontrá-lo, e botava as melhores roupas. Eu sou uma mulher hétero e, infelizmente, minha vida inteira girou em torno de homem, na busca intensa de viver um amor, de encontrar um cara que me completasse e me fizesse me sentir PLENA.
E como eu projetei! Projetei nuns coitados que jamais seriam nada do que eu queria, mas ainda assim já me declarei pra tanto cara diferente. Alguns lisonjeados, outros assustados, mas no fim eu era esquecida e deixada pra escanteio, ou eu mesma enjoava. Eu era incapaz de ficar com um cara e não querer mais. E mais. E mais.
Eu sempre fui louca por afeto e aprovação.
E desde o começo do ano uma luz se acendeu em mim que eu sempre choro de felicidade ao perceber. Eu finalmente consegui me libertar dessa construção que me dominou por tanto tempo. Sinto que, pela primeira vez, minha vida não gira em torno de homem e em busca dum tal chamado amor que sei lá o que deve ser no mundo idealizado.
Eu amo um homem, muito, e é doido como é justamente essa relação que me libertou. E é incrível não projetar nada mesmo num homem que me ama também. E também parei de projetar em todos os outros homens, aqueles que fico. E é doido porque esse ano nem deu abril e já é o ano que mais transei na vida, e com homens diferentes, uns excelentes, outros uns babacas que – eu por me amar – mandei parar no meio, mandei voltar pra casa porque não tava bom. Parar de projetar e buscar um amor me fez me empoderar de vez, me fez aprender a respeitar meu corpo e me fez parar de ter medo de homem.
“Por que você quer que eu pare?”, “Porque você quer só o seu prazer, ou dorme ou vai embora, não quero mais foder” – QUANDO QUE EU FARIA ISSO? Eu provavelmente teria batido uma pro cara até ele gozar e dormir. Ou então tive caras esse ano que quiseram dormir depois de gozar e eu exigi: EU TAMBÉM. E outros que tentaram ignorar minha genital e eu ano passado “entendia porque um corpo trans é diferente né e tudo mais e…” E AGORA SE ME QUER ME QUER INTEIRA, é lindinho… se eu chupar seu pau, meu pau irás chupar. Meu pau de mulher. Se me quiser, me quer inteira.
E é doido porque também tive noites esse ano com homens que mexeram muito comigo. Teve um que meu coração quase parou a hora que tomamos banho juntos e eu, ali entregue, senti muito afeto no coração e, mesmo assim, não me preocupei com um depois, nem sequer o quis, porque o agora estava tão bom, tão bom. E foi definitivamente a melhor transa do ano (acho que da vida), melhor transa + um cara carinhoso + um banho gostoso e, mesmo assim, eu quero o agora, eu quero o presente, não quero um amanhã inventado porque não preciso mais de homem pra me completar. Eu sou uma mulher inteira, eu sou plena, enfim.
Isso não quer dizer que me tornei incapaz de me relacionar. Mas aprendi que muito % do que eu sentia era projeção, que eu vivia numa não realidade e me machucava ou machucava outras pessoas porque o amor… Ah, ele não nasce assim do nada não. Não nasce num gozo, num beijo, num encontro. O amor é construção, dedicação, tempo, carinho, parceria, horizontalidade. Assim que eu aprendi, pelo menos, no meu amor. No único homem que tenho como parceiro num nível que, caralho, é transcendental. E não amor romântico não, nem platônico. Eu sei lá o que é, não sei o que deveria ser, eu só desfruto desse sentimento tão intenso que vive em mim há tanto tempo (e já foi em lugares normativos e projetados e bads e tudo mais, mas é doido ter criado horizontalidade porque tudo isso deixou de ser questão minha e virou nossa), e desfruto de toda a reciprocidade. Não esqueço que ele é homem mas, de alguma forma, isso não importa mais. Porque nele nem é isso que eu busco (mais). E doido que no livro da Clara ela cita um parceiro assim, que é meio amigo, meio amante, meio irmão. E é doido porque, se não projeto mais nem num cara que amo, vou projetar coisas em cima dum desconhecido qualquer? Se consegui também ficar com amigos tão queridos na vida, e não projetar nem neles que por vezes foram deliciosos, vou projetar em qualquer affair, flerte, crush?
Sinto que eu me libertei, finalmente, disso. Claro, me libertar de assédio na rua, por exemplo, não é algo que conquistarei sozinha. Mas todo esse afeto e essa busca ensandecida por amor que me foi enfiada goela abaixo por filmes, novelas, princesas Disney, propagandas, livros, professores, pais, mães, SOCIEDADE – toda essa busca ela… Cessou. E agora o que me toma tempo é estar com gente que AMO num lugar não idealizado, amigas e amigos tão queridos. O que me toma tempo é querer trabalhar, é querer gozar e é querer MUDAR ESSA PORRA TODA. Devoro textos feministas, penso nisso sempre, quero falar disso, trabalhar em cima. O que me toma tempo é querer transformar, ocupar, é querer resistir. Nunca me senti tão guerreira na vida, e isso veio com me empoderar SIM. Agradeço a TODAS AS MANAS e o FEMINISMO – principalmente o TRANSFEMINISMO – por aparecerem na minha vida.
Sou feliz e plena.
Helena.