Retrospectiva de textos publicados (parte 3)

Leia também:

Temas organizados a partir da data da publicação dos textos (de dezembro de 2015 até junho de 2016):

  • Noções de socialização e transfobia (01/12; 21/02; 03/03)
  • Noções de socialização, totalidade e funcionamento dos estereótipos de gênero (19/03; 29/03; 22/06)
  • Feminismo, liberalismo e o “se sentir bem” (08/01; 22/05)
  • Uso do banheiro (10/01)
  • Identidades e construção social (26/01; 23/02)
  • Psicoterapia e escolha existencial (03/02; 24/02)
  • Subjetividades trans e estereótipos de gênero (16/02; 01/03; 08/03; 27/03; 28/06)
  • Evidências equivocadas sobre as orientações sexuais (17/02; 23/06; 25/06; 28/06)
  • Lei de identidade de gênero e pessoas cis (20/02)
  • Feminismo e rizoma (22/02)
  • Local de fala e protagonismo (26/02; 10/04; 22/04; 16/06)
  • Par tabu-norma e problematização do sujeito de desejo (20/03)
  • Reposição hormonal (21/03; 28/03)
  • Noção de “mutilação” (23/03)
  • Cotas trans (26/03)
  • Em defesa de Amara Moira e a questão da prostituição (08/04; 03/05)
  • “Homens que se vestem de mulher” e o estigma transfóbico (23/04)
  • Transfobia e culpabilização da vítima (20/05; 23/05)
  • Cultura do estupro (21/05)
  • Travestilidade e transexualidade (11/06)
  • Atentado em Orlando (15/06)
  • Feminismo, mulheres trans e exclusão (21/06)

 01/12/2015

Discussão que tive com uma pessoa que reivindicava um feminismo trans-excludente

A socialização é algo que se estrutura previamente aos indivíduos. Vc falar em “antes” e “depois” não muda em nada o caráter transfóbico que é a noção de socialização. Pra que a “socialização” faça sentido e se imponha sobre os corpos das pessoas é a norma cisgênera que tem que ser mantida. Não se produz masculinidade e feminilidade desvinculada da noção hegemônica de cisgeneridade.

A forma como a sociedade socializa as pessoas não está indiferente às identidades trans das pessoas. Entendo, portanto, identidade não como algo abstrato, mas sim como algo que se estrutura socialmente e como algo que tem peso real sobre a vida das pessoas.

Não existe transfobia apenas a partir de uma “identificação” individual. Transfobia existe exteriormente e anteriormente à qualquer identificação individual. A transfobia se estrutura como forma necessária como as violências de gênero acontecem em nossa sociedade. Negar isso a meu ver é extremamente desonesto.

Precisamos falar sobre o impacto da TRANSFOBIA sobre a vida das pessoas. Estamos falando da socialização de pessoas trans numa sociedade transfóbica. O impacto da transfobia na nossa sociedade pode ser medido. O que acontece é que certas epistemologias tentam apagar a compreensão deste vetor que é específico. É preciso compreender a especificidade deste vetor de socialização, digamos. E falar apenas em “socialização masculina e feminina” acaba servindo pra apagar a compreensão desta realidade.

Ninguém socializa seu filho pra ser trans. Isso é óbvio. Mas é justamente ai que reside a violência, escamoteada sob a forma da naturalidade. É justamente pq nossa sociedade não espera – e não deseja – filhos e filhas e pessoas trans no geral que a transfobia se instala.

Sim, a partir do momento em que uma pessoa demonstrar desacordo com a norma cisgênera, isso não passará em branco. A partir do momento em que uma pessoa simplesmente aparentar não seguir o destino esperado da cisgeneridade ela será – na maior parte das vezes – severamente punida ou ostracizada. Por isso a transfobia é estruturante e faz parte da sociedade. Por isso o conceito de socialização não pode estar indiferente à existência da transfobia

Leia também os diversos depoimentos da Daniela Andrade. Ela como mulher trans analisa bem como foi socializada. Ela não tem família. Ela teve que se virar sozinha porque veja só, ela teve o “azar” – assim como a maioria das pessoas trans neste país – de nascer em uma família que não a aceitou. Não existe socialização posterior ou anterior. Existe estrutura social que determina previamente esta exclusão. A transfobia é algo que se estrutura previamente à exclusão contingente. Não teve que existir “primordialmente” uma pessoa trans para só depois existir exclusão. Ao contrário, primeiro existe sociedade transfóbica, depois há crimes transfóbicos. Não seja idealista, não inverta a causa pela consequência.

A socialização comporta falhas, ué. Se não comportasse falhas, onde existiria espaço pra contestação das regras e resistência? Existe uma relação dialética entre as normas e as transgressões. Não existe subversão sem norma, mas também não existe norma sem subversão. Se a socialização ou o imaginário normativo sobre o gênero se realizasse de forma “perfeita”, não existiriam movimentos sociais como o feminismo que questionassem justamente o caráter estável e pretensamente lógico e “neutro” destas normas. Então sim, se socialização envolve normas, “desde sempre” há possibilidade de contestação delas… é um movimento dialético e contraditório. É partir da noção que nos é imposto sobre homens e mulheres que podemos resistir a elas, buscar rachaduras neste imperativo, sentidos contra hegemônicos, etc. A ideia de que “socialização” é unívoca e se realiza sem resistência é apenas fruto do nosso imaginário, não é real.

Então, a socialização, por mais que seja uma força que interpele igualmente a todos terá “resultados” distintos em casos de indivíduos pontuais. A questão não é precisamente essa, o que eu estou tentando apontar é para a necessidade de compreender que para que exista algo como papeis esperados que homens e mulheres exerçam na sociedade (e pra isso as pessoas são “socializadas” para se enquadrar nestes papeis imaginários pré estabelecidos) é necessário visualizar que existe um fator igualmente estruturante, que é a cisgeneridade. A masculinidade e feminilidade só adquirem sentidos e coerências pq delimita-se a cisgeneridade como o gênero esperado do ser humano, não-patológico, pretensamente não-delirante, “verdadeiro”. Tudo isso se contrapõe à transgeneridade, vista como falsa, patológica, etc. E pensando isso estruturalmente, as pessoas trans são marginalizadas segundo justamente estes estigmas: que são loucas, que são falsas, que são doentes e etc. Isso faz parte da socialização porque se falamos de gênero, a cisgeneridade é estruturante das normas da masculinidade e feminilidade.

O fato de alguém se perceber e poder externalizar sua identidade trans não muda o fato da transfobia se estruturar de forma independente disso ocorrer pois o meu argumento é que a transfobia é estrutural, ou seja, é necessária como a norma de gênero funciona na sociedade.

Colocar a questão da transfobia nestes termos (de que existe uma socialização “apenas” para pessoas cis e pessoas trans são apenas um resto posterior da socialização) faz a gente cair em perspectivas que culpabilizam a existência de pessoas trans pela própria violência que elas sofrem.

Muitas pessoas trans vivem como pessoas cis por grande parte das suas vidas. Ou melhor, se reconhecem como trans e só fazem a transição às vezes na fase adulta ou mesmo na velhice. Não me importa os motivos psicológicos e individuais que levaram estas pessoas a transicionarem em diferentes idades de suas vidas. Também não me importa muito, num primeiro momento, dizer se enquanto indivíduos essas pessoas sofreram com isso ou não. Não me interessa se existem pessoas cis que viveram muitos anos de suas vidas como cis e depois de um tempo se assumiram trans. Isso não prova nem desmente nada para a teoria feminista. Eu não preciso comprovar ou basear a teoria a partir de sofrimento de indivíduos. O que me interessa é outra coisa… é observar que a partir do momento em que essa pessoa expressar inconformidades à cisgeneridade (este é um momento atemporal, vale dizer, pois é um tempo imperativo “a qualquer momento”, é algo que perpassou todo o tecido social e a vida dos indivíduos de todas as idades), a sociedade não estará indiferente a essa pessoa. Seja ela cis, ou vir a ser trans. Isso justamente prova que vivemos numa sociedade em que se vigia o transito de gênero a partir de relações de poder transfóbicas… não prova que transfobia não exista.

08/01/2016

Parece que algumas pessoas querem tanto supostamente criticar de uma forma provavelmente mais “profunda” o individualismo e o liberalismo que acabam errando na mão. Eu já ouvi algumas vezes no feminismo a expressão acerca de um feminismo que supostamente estaria preocupado em fazer as mulheres “se sentirem bem”. Acontece que o “se sentir bem” é tido como algo negativo, supostamente atrelado a noções liberais e individualistas. Mas então eu me pergunto: o que teria de mais revolucionário do que construir um mundo no qual mulheres se sintam bem? Quer dizer então que agora se sentir bem não pode, então temos que ser tristes? Feminismo é a luta pras mulheres se sentirem mal? (este é o implícito, por mais absurdo que soe: temos que aprender a ouvir este absurdo como algo sintomático). Percebam como os implícitos funcionam aqui e eu considero isso bastante sintomático na forma como compreendemos questões centrais no feminismo que dizem respeito à autonomia/agência dos sujeitos e constituição de subjetividade.

E eu aqui toda ingênua achando que o que impedia as mulheres de se sentirem bem era o machismo. Pessoal, vamos nos ligar. Lutar por causas coletivas não implica ser uma espécie de mártir. Não se opõe a luta pelo “se sentir bem” e a libertação coletiva. Por que diabos uma coisa teria antagonismo com a outra? Apenas um feminismo que fetichize o sofrimento e os afetos tristes poderia pensar que a libertação coletiva não estaria diretamente em sintonia e conectado com o “se sentir bem”. Quem foi que disse que pra lutar pelo bem coletivo era necessário sofrer, se sacrificar por um suposto “bem maior”? Vou ajudar: a cooptação e colonização das nossas forças revolucionárias pelo poder pastoral, pelo cristianismo. Lutar para – não – se sentir bem – não – é revolucionário.

10/01/2016

Comentário que fiz para o texto de Amara Moira, FEMINISMO RADICAL E BANHEIRO PARA PESSOAS TRANS. Leia também o texto A PROIBIÇÃO DO USO DO BANHEIRO É UM ATENTADO AO BEM COMUM.

Este é o típico exemplo de caso em que, ao exigir a máxima coerência do que se propõe, as falhas e brechas do próprio discurso irrompem. É o tipo de discurso que não consegue se sustentar na prática, já que no momento mesmo em que se tenta dar cabo de sua realização pressuposta, caímos na sua própria impossibilidade constitutiva. Quer dizer, se vamos de fato levar a sério o que estes fundamentalistas de gênero dizem acerca das pessoas trans e uso do banheiro, nós estaríamos advogando não apenas para violências sutis contra um grupo específico, mas pra defesa da própria barbárie, de uma própria distopia.

O tiro desde sempre sai pela culatra: é apenas efeito imaginário que a ideia de proibir o acesso de pessoas por meio de normas cisgêneras poderia se circunscrever apenas às pessoas trans. O regime de produção de verdades sobre os corpos cis não possui sustentação em si mesmo, ele excede pela falha.

Este caso acerca da discussão do uso dos banheiros nos faz constatar algo: que o discurso cissexista, neste caso, não necessita, para que seja desconstruído e rebatido, de mero antagonismo; não precisamos mobilizar argumentos contrários à proibição do uso do banheiro. Ao contrário: é preciso apenas exigir a responsabilização do próprio discurso para que ele, por si só, se desmonte.

“Proibição do uso do banheiro por pessoas trans” e “defesa da barbárie” são enunciados que na prática significam a mesma coisa.

26/01/2016

Quando dizemos que identidade, gênero e sexualidade são socialmente construídos não estamos implicando na lógica que “o meio determina” no sentido de que esse “meio” seria algo unívoco, absoluto e sem contradições.

Quando se fala do “meio”, da “sociedade” (no sentido de “socialização” muitas vezes) se está confundindo coisas distintas: o que se espera que as pessoas sejam e o fenômeno da construção social em si. A construção social não se resume ao que as pessoas e a sociedade esperam que você seja. Isso é apenas a norma. O que a sociedade espera que as pessoas sejam é a norma. Acontece que a construção social vai além da norma, ela comporta processos de resistência, contradição, fluidez, contestação e subversão.

Por isso dizemos que a homossexualidade, a não-heterossexualidade, as transgeneridades são construções sociais. Porque construção social não é sinônimo do que a sociedade espera imaginariamente as pessoas serem. A construção social vai além destas expectativas OU SEJA ela comporta as subversões e as quebras das expectativas. Construção social jamais foi sinônimo do que a sociedade empurra para os indivíduos como única possibilidade de existência com base em normas.

Aliás, a norma SÓ FAZ SENTIDO na medida em que existe dialeticamente a subversão, ou seja, a identidade, o gênero e a sexualidade normativas só existem porque tudo o que fica de fora dela estabelece contornos entre o dentro e o fora do que é considerado adequado, saudável, legítimo e verdadeiro.

03/02/2016

Quando falamos acerca de psicoterapia para pessoas trans existem certos aspectos que tomamos como evidentes que são extremamente contestáveis. Diria, aliás, que se tratam de certas coisas que não podem ser “resolvidas” mas são equivocadamente postas nestes termos. Certas coisas não podem ser resolvidas porque são inerentes a condição humana: como a angústia frente a existência.

Estas questões são postas nestes termos porque não sabemos lidar com a angústia e menos ainda com a angústia ligada à identidade de gênero. Uma dessas coisas é a questão do “ter certeza que você é trans pra que você possa tomar suas escolhas existenciais”. E mais especificamente as escolhas existenciais dizem respeito ao se “assumir como trans” e fazer modificações corporais.

Partimos do pressuposto errado e criamos expectativas e práticas inadequadas para a psicoterapia. A psicoterapia não faz a gente ter certeza do que somos porque não somos algo imutável e pré-determinado. Nós escolhemos o que queremos ser, ou seja, nós construímos o que desejamos ser a partir de algo que não é previamente determinado. Ou seja, o “ter certeza” de algo em relação a si mesmo não pode remeter a uma existência imutável e pré-determinada. Nós construímos quem somos e para isso, nós escolhemos.

O fato de que queremos tanto “ter certeza” de algo pra só depois nos permitirmos fazer este “algo” é um sintoma de nossa angústia existencial. Não se pode resolver a angústia existencial advogando para uma “certeza das escolhas” pautadas em supostas essências do ser, tampouco colocar essa tarefa “milagrosa” nas mãos de psicólogos. A existência precede a essência.

Nossas escolhas são necessariamente parciais, frágeis, circunstanciais. E justamente por isso são tão valiosas. Isso faz parte da condição existencial humana. Nós só podemos escolher a partir de uma situação e toda situação é composta por um complexo de determinações e fatores. Uma chancela de um laudo não é capaz de dirimir a angústia da escolha porque em última instância você terá que escolher a partir deste complexo contraditório de escolhas possíveis. E de todas as escolhas possíveis nenhuma é de forma pré-determinada melhor do que outra. Desde o momento em que escolhemos, estamos à mercê da possibilidade do arrependimento. Isto não é ruim, é constitutivo da nossa condição de existência.

A psicoterapia, ao contrário de nos fazer encontrar a imutabilidade do ser que poderia garantir alguma certeza existencial, faz a gente poder contemplar as circunstâncias de nossas escolhas. A possibilidade de escolha não está protegida por uma certeza de nossa essência. A psicoterapia deve trabalhar a partir disto, ou seja, do fato incontornável que não podemos ter certezas absolutas e imutáveis acerca de nossas escolhas.

16/02/2016

O que eu mais vejo em discursos feministas mal intencionados ou que partem de um lugar que naturaliza a cisgeneridade, é o alarme acerca de um perigo que a transgeneridade sugere – em especial nas crianças – em relação a uma suposição de uma espécie de “rebaixamento” do ser pelos aspectos estereotipados do gênero. Explico melhor.

Muito se critica que é um perigo alguém se identificar como trans “apenas” pelo fato de gostar de alguns atributos/práticas relacionados ao gênero oposto ao designado/esperado. “gosta de usar vestido e brincar de boneca e só por isso se diz trans? isso é um perigo”.

Mas dai eu me pergunto: e se alguém “quiser ser trans” por causa de “boneca, balé, maquiagem *insira aqui outra coisa marcada por gênero*”? O que há efetivamente de Mal nisto? Porque é necessário administrar as subjetividades das pessoas tendo em vista uma expiação dos estereótipos? E porque seria necessária uma administração existencial diferenciada das pessoas trans em relação às pesssoas cis? Alguém pode ser trans porque não pôde desenvolver uma suposta consciência “profunda” de si, longe da superficialidade de estereótipos? E quanto à consciência cisgênera de si, como isso se dá? A consciência cis de si é transcendente aos estereótipos de gênero? Como é possível a gente partir da assunção que formas de subjetivação trans são a priori “erradas” se estas supostamente se guiarem por estereótipos? Como foi possível assumir que a existência de pessoas trans se resume e é tão somente reflexo de estereótipos de gênero (tidos como algo que torna a existência “superficial”)? Como podemos afirmar que existe algo além de estereótipos de gênero? Podemos afirmar que existe algo supostamente mais profundo e verdadeiro que os estereótipos que nos determinaria?

Primeiro, nós transfeministas sempre criticamos a homogeneidade como se retrata nossas identidades e vivências. Nós criticamos a visão que patologiza nossas identidades exatamente por isso. Pessoas trans são diversas e tem diversos interesses, sendo que nenhum deles é pré-determinado por alguma substância. Mulheres trans podem gostar de coisas tidas masculinas e femininas e isso não diz respeito a priori a sua identidade. Gostar de certas coisas, por si só, não te fazer homem ou mulher. Nós fazemos questão de frisar isso, para que homens e mulheres possam fazer o que desejam independentemente de estereótipos e que, portanto, façam o que quiserem sem serem coagidos ou constrangidos a serem ou se entenderem enquanto homens ou mulheres.

Acontece que existe algo subjacente a essa suposta “precaução” para pessoas não serem trans: só se sustenta a tese implícita que ser trans é algo indesejado, “estranho” e inadequado a partir de um viés cissexista. Porque você só parte disso supondo certas coisas das pessoas trans; e você só supõe coisas “estereotipadas” ou “superficiais” a priori de pessoas trans a partir de uma visão cissexista. Porque, em última instância, não existe forma pré-determinada para alguém ser trans. Não existe um ser trans universal. Se você trata a transgeneridade como uma entidade patológica que necessita de precaução para que uma população não seja “contaminada”, nós temos muito o que discutir aqui. E rebater essa visão que patologiza e exotifica nossas vidas.

Você só torna evidente a existências de pessoas trans como algo essencialmente não desejado – como se nós tivéssemos que tomar certas “precauções” para a população não seja trans por supostos motivos “errados” (“estereotipados”) – se você parte de uma noção cissexista (e por si só estereotipada!) sobre a existência de pessoas trans. Você só presume que as existências das pessoas trans são “normativas” a partir de uma visão que engessa a priori as existências trans (ou seja, uma visão normativa ACERCA DE NOSSAS VIDAS), ou seja, que culpabiliza as existências de pessoas por normas estruturais.

Para nós, pessoas trans (e aqui eu falo como mulher trans), é evidente que nossas existências vão muito mais do que brincar de bonecas ou usar maquiagem. Acontece que brincar de bonecas e usar maquiagem só se torna uma questão a partir do momento em que se estabelece critérios sobre quais corpos são inteligíveis ou não para tais práticas. Então, se você for uma criança trans brincar com boneca pode ser algo importante na medida em que isso é interditado para a sua vivência. Não se trata de uma essência; de algo biológico ou místico: se trata sim de questionar porque certos sujeitos são suficientemente inteligíveis para certas práticas e hábitos ou não; e portanto, poder criar novas formas de interpretação do mundo que questione a evidência dessas exclusões.

Neste sentido, é importante sim a gente ver a relevância dos aspectos/vivências que são tabu para pessoas trans. Brincar de boneca e usar maquiagem não é apenas uma abstração acerca de estereótipos, são práticas que são interditadas para certas marcações de gênero. É importante apontar que se trata de resistência a reivindicação de modos de vida que são interditados a partir de normas de gênero. Não se trata de algo essencial, de algo que seria universal a todas as pessoas trans, mas sim de uma luta para criar um mundo mais habitável para as pessoas que não se enquadram nestes limites impostos por estes padrões que geram tantos estigmas.

17/02/2016

Essa história de que “casal hétero só serve pra fazer gays”; “casal gay não faz filhos mas só adota os que foram abandonados pelo casal hétero”, etc, precisa ser problematizada. Casal gay pode “fazer” filhos biológicos (pessoas trans existem, meus caros) E a capacidade reprodutiva não pode ser ancorada de forma unívoca a uma identidade.

Colocar uma base essencial que liga a homossexualidade a uma impossibilidade de “não ter filhos” é inadequado e, além disto, exclusivo pois retira a possibilidade de pensarmos outros corpos que habitam a homossexualidade. Pessoas trans também habitam a homossexualidade. Pessoas homossexuais também podem ter filhos biológicos e este fato não contradiz a identidade homossexual. Possuir ou não capacidade de se reproduzir com certos corpos não deve servir como parâmetro das identidades.

É preciso que a gente não fique tão somente na evidência sobre o que é um homossexual e um heterossexual – com base na capacidade reprodutiva – para não excluirmos pessoas que estão a margem das formas de representação hegemônica. Existem corpos e identidades que estão a margem e é papel da nossa militância não circunscrever e limitar identidades a partir de uma forma de representação hegemônica. É preciso abrir as formas de representação e inteligibilidade para as multiplicidades e possibilidades dos seres. E fechar identidades e representações com base em ser gay e não poder ter filhos biológicos, vamos convir, é algo que deveria soar péssimo.

20/02/2016

Ouvi hoje uma crítica inédita sobre a lei de identidade de gênero. A lei João Nery só vai permitir a alteração de nome SEM PROCESSO judicial para pessoas trans; contudo, a exigência para pessoas cis iria continuar. Tal fato poderia levar as pessoas acharem que pessoas trans estariam lutando por privilégios, tendo em vista que o projeto não estaria abarcando também pessoas cis.

Em primeiro lugar: eu não vejo as pessoas cis se mobilizando por esta causa. As pessoas cis não parecem que se importam muito com isso. Se existisse um movimento de pessoas cis para facilitar o processo da mudança de seus nomes, acho que a crítica seria mais pertinente. Contudo, as pessoas cis não sofrem violências sistemáticas e estruturais em decorrência do fato de não conseguirem alterar seus nomes. Não vejo elas se importando com isso porque socialmente não se trata de fato de um problema. Acho que por aí já podemos ver que as situações não são simétricas. Ao nos lembramos do que está em jogo em termos de acesso a cidadania e direitos tendo em vista que vivemos numa sociedade transfóbica, já cai por terra o argumento de que estamos defendendo “privilégios”.

Mas eu concordo de que idealmente, o direito ao próprio nome não deveria depender de processos judiciais. Não vejo o menor motivo de haver maior burocracia para as pessoas cis. Contudo, não podemos usar esse fato com o intuito de deslegitimar a nossa causa, que é das pessoas trans. Cabe lembrar também que a retificação de nome de pessoas cis já é, atualmente, mais aceita do que de pessoas trans.

Pessoas cis não passam as mesmas situações vexatórias que as pessoas trans num processo como este. Pessoas cis não tem que apresentar laudos psicológicos e psiquiátricos atestando uma patologia, justamente porque a cisgeneridade não configura situação tida como patológica. Então as situações não são simétricas. Duvido que algum juiz exija que pessoas cis passem por determinadas cirurgias ou tratamentos hormonais para garantirem a retificação de um nome de “João” para “José”. Seria simplesmente impensável.

De fato, não há motivo para haver burocratização em relação a retificação de nome para qualquer pessoa, seja cis ou trans. Acontece que para as pessoas trans, alteração de nome não é apenas uma alteração de nome, é uma bandeira de luta. Isso não é o mesmo para as pessoas cis.

21/02/2016

Discussão que tive com uma pessoa que reivindicava um feminismo trans-excludente

Se você diz que transfobia não existe, você acaba culpabilizando, pela teoria, as agressões que pessoas sofrem sistematicamente. Ou seja, é algo que subjaz uma perspectiva. Quero dizer, se vc não reconhece a transfobia como um dado estruturante, sistemático e exterior aos indivíduos você sub-repticiamente coloca a causa/origem/ “culpa” no indivíduo, mesmo que vc não tenha, a princípio, a “intenção”… esse é o meu argumento. Meu argumento vai na direção de que sim… se você nega a transfobia, haverá lacunas na sua teoria, ainda mais quando ela se propõe falar sobre pessoas trans. Uma coisa leva necessariamente a outra: se você diz que transfobia não existe, há uma lacuna explicativa na teoria sobre violências sistemáticas contra um grupo. E se você não compreende a materialidade da transfobia – ou seja, a sua existência – a teoria vai lidar de forma espontânea quanto a compreensão dos casos de agressão. E a forma espontânea de compreender o mundo é a liberal, ou seja, que atribui as causas aos indivíduos.

Eu não sei o que seria “reforçar o materialismo”. Materialismo não se “reforça” ou não, é uma perspectiva que se filia ou não. E se por “revolução” você estiver se referindo a culpabilização de pessoas trans por “reforço de estereótipos” de gênero – ao supostamente defender a abolição de gênero – me coloco a distância dessa concepção de revolução.

Bom, eu acredito que seja necessário falar das especificidades da transfobia, mesmo compreendendo que ela necessariamente se interseciona com a misoginia. A meu ver, certos deslocamentos que algumas feministas operam vão no sentido de deslegitimar as denúncias de transfobia, como se fosse coisa “pouco importante” ou incompatível com o próprio feminismo. E sim, eu já vi muitas feministas radicais que alegam que a transfobia não existe e é com esse discurso que o meu texto dialoga, sobretudo.  Não adianta nada falar que transfobia é causada como reflexo do patriarcado se você acha que a luta das pessoas trans é incompatível com o feminismo. É evidente que a transfobia se insere num contexto desde sempre misógino: afirmar isso deveria nos alertar para justamente a importância de se discutir as especificidades, não apaga-las.

Nunca se critica “apenas” um termo. Se critica uma perspectiva, se critica uma epistemologia… se vc critica a transfobia como termo é porque, muito provavelmente, vc ache que a transfobia não exista ou é coisa de “menor importância”. Não existe critica sobre uma palavra num vácuo.

Minha opinião é que a transfobia é implicada numa relação estrutural da reprodução das normas de gênero. Então por isso eu entendo que falar sobre especificidades não implicaria em uma perspectiva “fragmentária”. Falar sobre transfobia é desde sempre falar, também, do todo. O liberalismo pode ser entendido como uma “compreensão espontânea” da realidade. Cabe a uma perspectiva materialista ir além desta espontaneidade que as perspectivas liberais são capazes. A compreensão materialista da realidade é um trabalho da realidade mediada pelos conceitos materialistas, ou seja, pressupõe uma filiação teórica explicita.

22/02/2016

Meu feminismo vai sim às raízes, mas a raiz é um rizoma.

A partir de uma discussão que tive hoje, me veio a mente uma questão… algumas pessoas alegam que se critica o termo “transfobia” em virtude de uma perspectiva que iria levar em conta que a transfobia seria um reflexo da misoginia/machismo. Ou seja, transfobia e misoginia estabeleceriam relações hierárquicas – em termos de compreensão dos vetores de opressão: em virtude da misoginia, o reflexo é transfobia, o que redunda em dizer que a transfobia, como vetor, está subordinado a existência da misoginia; como forma de funcionamento estruturante. Um viria “antes” e o outro, “depois”. Essa lógica projetaria formas específicas de militar, ao estabelecer as “prioridades” de luta conforme esta hierarquia.

Mas aí vai o questionamento: quem disse que misoginia é a raiz e outras formas de opressão são as folhas? Quem estabelece a hierarquia, o topo? E se eu resolvesse que é a transfobia que direciona a misoginia, quem poderia alegar o contrário? E como? Aqui vai uma reflexão muito semelhante que eu já fiz em relação a homofobia e transfobia (veja aqui, https://transfeminismo.org/retrospectiva-de-textos-publicados/ texto do dia 14 de junho de 2015). Poderiam dizer que homofobia estrutura a transfobia previamente, também numa relação hierárquica (ou que homofobia seria “mais material” que transfobia). Mas quem decide isso? Quem é o dono do martelo que estabelece estas relações? E se eu disser que é a transfobia que direciona a homofobia?

Eis minha humilde opinião: os vetores de opressão, segundo uma perspectiva intersecional, se relacionam através de um rizoma, não de uma árvore. Toda intersecção é sempre rizomática. Em virtude disso, nossa militância tem que ser, igualmente, rizomática. Não me interessa estabelecer relações hierárquicas (que orientaria minha militância) entre os vetores: me interessa compreender como eles, rizomaticamente, se intersecionam. Tiro o conceito de rizoma de Deleuze, leia aqui http://razaoinadequada.com/2013/09/21/deleuze-rizoma/

23/02/2016

Dizemos que identidade e sexualidade são construções sociais. O problema é: as pessoas tem uma ideia bastante inadequada acerca do que é uma construção social como se fosse determinismo social. Essa ideia está muito presente quando as pessoas dizem que pais gays iriam “ensinar” seus filhos a serem gays, por exemplo.

Quando dizemos que identidade é determinada socialmente e historicamente não estamos resumindo a construção identitária a um determinismo linear; como se pudêssemos determinar tal identidade a partir do condicionamento e internalização de certos comportamentos. A identidade não é uma unidade coesa e fechada sobre si mesma, ela necessita de um Outro que a constitua. Afirmar a determinação histórica e social das identidades não implica incorrer numa perspectiva determinista sobre as identidades. As sínteses que fazemos acerca de nossa identidade se dão a nível do inconsciente.

Construção social não se dá a nível de causalidade linear. As identidades se dão a nível inconsciente e as sínteses que o inconsciente opera não se dão através de uma perspectiva linear de causa e consequência. Não é possível prever uma resposta do inconsciente, mesmo a gente admitindo que as sínteses que o inconsciente opera se dão através de marcos socialmente e historicamente determinados. O social e o histórico se dão através de determinações complexas e contraditórias, não lineares e previsíveis. Não existe A causa B como fórmula universal e binária do inconsciente, A pode causar B, mas também C, D, E… Para o inconsciente também não serve o princípio lógico de não-contradição: A não é necessariamente igual a A, e A e B não são necessariamente diferentes.

Construção social, como eu já disse em outro post, não é o que se ensina acerca de comportamento corretos que devem ser seguidos (e internalizados) pelos sujeitos através das normas. A construção social comporta também o que não é visível, porque comporta o que ainda não existe, o por-vir, o devir. A construção social comporta os comportamentos indesejados que constituem a norma. A construção social não é síntese linear de determinantes num sistema fechado; a construção social se dá por meio de um sistema aberto à contradição, resistência e transformação.

24/02/2016

Está saindo notícias de que a Lea T supostamente se arrependeu de fazer cirurgia e a gente já sabe o que vai ouvir: “tinha que ter feito mais terapia”, o que acaba incorrendo na defesa de maior controle de psiquiatras sobre a nossa autonomia corporal. É sempre assim. Mas aqui vai uma coisa que pode parecer chocante: eu não luto só pelo direito a escolha, eu também quero ter o direito de poder me arrepender. Escolha não vem separada da possibilidade de arrependimento. Isso simplesmente é constitutivo da vida, não é possível abolir a possibilidade de se arrepender diante das escolhas existenciais.

Ué, premissa básica gente: a partir do momento em que lutamos pelo direito de escolha, nos implicamos na possibilidade de arrependimento. Se eu tenho direito de escolha, também assumo automaticamente a possibilidade de me arrepender. E eu vou lutar para isso também, para que eu possa eventualmente me arrepender e ninguém vir me dar lição de moral. Não é porque eu me arrependo de algo que eu vou precisar agir de má fé em relação a minha própria escolha: nenhum médico, psiquiatra, psicólogo, etc, com posse sobre um suposto discurso da verdade sobre as pessoas poderia dirimir a possibilidade de arrependimento.

A menos que você realmente ache que vão ser psiquiatras e psicólogos que vão poder fazer suas escolhas por você: isso, infelizmente, não passa de uma ilusão. Nenhum saber/prática psiquiátrica ou psicológica é capaz de tomar a decisão pelas pessoas com base numa suposta verdade externa ao próprio sujeito.

Não use a questão do arrependimento como argumento para que pessoas trans não possam escolher como gerir os seus corpos. Nenhum poder psiquiátrico e psicológico que supostamente diz a verdade das identidades pode dirimir a possibilidade de arrependimento. Acreditar nisso seria o mesmo que agir de má fé em relação a si mesmo.

26/02/2016

Depois da negação da negação, podemos fazer uma síntese. O debate sobre o “local de fala” e “protagonismo” acaba caindo numa circularidade: os grupos oprimidos precisam passar a ter voz, já que foram historicamente silenciados. O grupo que detinha a hegemonia em relação ao grupo oprimido neste processo, precisaria, ao mesmo tempo, aprender a ouvir esse outro – o que implica um processo de trabalho com o silêncio – para que ele possa estabelecer uma relação de alteridade com esse outro, a ponto de poder não “representar” o outro, mas fazer a voz do outro ecoar, fazer efeitos na sociedade. Não se trata também de “ceder” espaço de voz, mas de produzir multiplicidades capazes de fazer as vozes, até antes silenciadas, produzir efeitos (múltiplos e rizomáticos, na minha opinião) na sociedade.

Esse processo contudo, é envolto em várias polêmicas, já que o processo envolve dois elementos contraditórios a primeira vista. Para poder falar a voz do outro, a partir de um local de privilégio, é preciso se calar. A questão poderia: quanto e como se calar? E quanto e como falar a partir de uma posição deslocada pela alteridade?

O que eu poderia dizer: o silêncio por si só, partindo dos grupos privilegiados, não ajuda a luta dos grupos subalternos. A fala irrefletida e colonizatória é tão violenta quanto o silêncio que naturaliza o desprezo para com os oprimidos. Desejar que as pessoas privilegiadas simplesmente se “calem” frente a um local de fala é o mais do mesmo. É confortável que as pessoas privilegiadas fiquem caladas, pois é uma atitude passiva e espontânea frente ao mundo que por si só acaba apenas reproduzindo as relações de privilégio.

Dessa forma, não precisamos hesitar em dizer que é necessário que pessoas privilegiadas falem sim; mas falem a partir de um local diferenciado, que se dá através do trabalho de alteridade em relação a voz do outro. Da mesma forma temos que dizer: falar por falar também não ajuda. Falar a partir da espontaneidade do local de privilégio não nos serve, pois este é precisamente o funcionamento da hegemonia do discurso opressor, que se passa como uma pretensa verdade da natureza, como se fosse uma verdade atemporal que se enuncia sem um sujeito. É importante apontar os elementos de um discurso que não são naturais, eles provém de um local de fala opressor – justamente porque não trabalha o próprio discurso pela alteridade. Falar a partir de um local de fala hegemônico é reproduzir espontaneamente os discursos opressores.

É aí que cabe a beleza da síntese: nem silêncio e nem fala irrefletida; nós queremos que os sujeitos privilegiados passem a trabalhar o seu discurso tendo em vista um real deslocamento de sua própria posição através da escuta – como trabalho ativo de alteridade – das vozes historicamente silenciadas.

01/03/2016

Você que se interessa pelo marxismo, feminismo, movimento gay, dentre outros movimentos de contestação e resistência: verifiquem se não se está, através de um efeito de homogenização, se vilipendiando o grupo de pessoas trans no seu movimento. Desconfiem sempre de discursos que apontem um alvo muito fácil e homogêneo: as pessoas trans, travestis, transexuais e demais dissidentes da norma cis. Desconfiem ainda mais quando esse apontamento se dá em nome do marxismo, feminismo e da luta anti-homofobia.

Porque sim, é fácil perceber a má fé em relação a um bolsonaro qualquer. Mas estamos vendo diversos discursos, ao mesmo tempo difusos e sistemáticos, em nome do feminismo, marxismo e luta anti-homofobia, que estabelecem que pessoas trans são, ora culpadas de alguma coisa que é socialmente terrível, ora sub-produtos de uma suposta relação de forças malignas da sociedade. Ambas as opções desconsideram as existências e lutas das pessoas trans. Ambas as opções jogam com o imaginário, do senso comum, que imputa às pessoas trans ora um total desconhecimento, ora uma total abjeção. Estamos vendo pessoas literalmente defendendo transfobia em nome do feminismo, do marxismo, da luta anti-homofobia.

Por isso é importante ressaltar: lutar pelas vidas trans não incorre na defesa de “estereótipos de gênero”; não incorre necessariamente na assunção de uma perspectiva “liberal pós-moderna”; não incorre na defesa de forças reativas que constituem os sujeitos como corpos dóceis. As pessoas trans estão além dos discursos e dispositivos normativos que constituem o gênero como sanção e violência. Defender as vidas trans é afirmar a potência de vidas diferentes para além de forças reativas que conformam afetos tristes. Defender as vidas trans é defender a alegria, afirmar, portanto, a alegria que as formas diferentes de vida podem proporcionar.

Não culpe pessoas trans por algo de muito ruim que acontece no mundo. Pessoas trans não são um grupo homogêneo de pessoas que essencialmente pensam e fazem algo inadequado ou errado. Pessoas trans não são um grupo homogêneo de pessoas que incorrem em posicionamentos que VOCÊ considera inadequado. Antes de tudo, pessoas trans são tão diversas em seus posicionamentos quanto as pessoas cis. Por isso, culpar o grupo de pessoas trans por algo que você acha errado só pode partir de má fé em relação ao nosso grupo. Seja a má fé relacionada a pura ignorância ou discurso de ódio puro.

03/03/2016

Dizer que “socialização não falha” significa o que, efetivamente? Afirmar isso ad-nauseam implica levar em consideração o que exatamente, enquanto análise que orientaria certa prática política? Se dizemos que socialização não falha, e se levamos em conta que a socialização se refere tão somente ao aspecto em que somos levados a internalizarmos e reproduzirmos valores hegemônicos e opressivos, a quem e para quê isso serve?

Pra mim está cada vez mais evidente que bradar que “socialização não falha” é desculpa cada vez mais específica e sistemática para produzir exclusão e desconhecimento acerca da situação concreta de pessoas trans, travestis e mulheres trans. Só se usa “socialização não falha” pra negar a existência de pessoas trans; só se usa “socialização não falha” pra poder dizer que mulher trans é homem e que tudo isso não passe de “escolha de vertente teórica”. Só se usa “socialização não falha” para negar a escuta de vozes trans, para negar a priori a possibilidade de tomada de consciência revolucionária por pessoas trans. Só se usa “socialização não falha” para negar a luta e revindicações políticas trans.

Ninguém usa “socialização não falha” pra dizer que lésbicas e homossexuais não existem. Ninguém usa “socialização não falha” pra dizer que a resistência contra as opressões não pode ser possível. Ninguém usa “socialização não falha” pra dizer que não há escapatória para o capitalismo e machismo. Ninguém usa “socialização não falha” quando se trata de pensar acerca de qualquer tipo de contestação contra-hegemônica – excluindo aqui aquelas em relação às pessoas trans, claro. Curioso é notar que “socialização não falha” só serve para travestis e transexuais. Para mais o que, aliás, isso poderia servir? Essa seletividade, meus caros, tem nome: cissexismo. Acreditar que pessoas trans se resumem a uma conjuntura de forças estática é o que deseja a transfobia. A transfobia deseja que pessoas trans sejam vistas e interpretadas através de um marco homogeneizante, estático, culpabilizador.

08/03/2016

Se afirmamos que “crianças trans não existem” teríamos que na mesma medida questionar a existência de crianças cis. Mas vejam o que acontece: o questionamento é desde sempre seletivo, de forma que a negação de existência de crianças trans parta de um desejo em si mesmo de que essas crianças não existam. Isso não é uma afirmação em abstrato, é um ato performativo. Dizer que crianças trans não existem é defender que a vida de pessoas trans não seja possível de ser vivida desde a infância.

Eu sou uma mulher trans e reivindico uma memória de infância não cisgênera. Isso porque, vejam só, o fato deu não saber da existência de um rótulo trans enquanto criança não me impediu de existir a partir da resistência contra a cisgeneridade compulsória. A resistência precede a qualquer rótulo em específico.

Nós pessoas trans não somos produtos de estereótipos de gênero ou de forças malévolas do capitalismo. Nós somos sujeitos de nossas histórias, e nossas histórias são múltiplas. Lutamos para que seja possível viver a partir destas multiplicidades de histórias. Rejeitamos a visão ciscentrada que circunscreve a nossa existência a forças e afetos tristes. Ao contrário, nós somos afirmação de vidas diferentes em suas positividades quanto a forma de se afetar e afetar o mundo.

Ser trans é se construir enquanto trans num mundo cissexista. Não é receita de bolo; não é seguir estereótipos de gênero; não é aceitar passivamente a assimilação de subjetividades pelo capitalismo. Ser trans é se construir a partir da resistência: isso vocês transfóbicos NÃO podem tirar de nós.

Pessoas trans não são mais artificiais que pessoas cis. Eu enquanto mulher trans luto para um mundo onde crianças possam ser trans. Esta é minha luta. Você não pode criticar a existência das pessoas trans enquanto crianças sem que antes se atente para os marcos de naturalização da cisgeneridade: caso contrário você estará patologizando e colonizando nossas vivências a partir de uma visão cis.

Nós não somos surto. Nós não estamos mais doentes ou saudáveis que vocês, pessoas cis. Nós somos o Outro que constitui sua coerência normativa em relação a cisgeneridade.

19/03/2016

Já ouvi falar que a noção de totalidade estava saindo de moda, que hoje em dia é tudo perspectivismo, etc. Concordo em partes com essa denúncia: inclusive eu diria que nos ajudaria a compreender a totalidade em questões que parecem estarem intocadas epistemologicamente. A totalidade quando falamos de socialização de gênero, por exemplo.

Quando se defende a perspectiva de duas socializações absolutamente distintas – a feminina e masculina – como se existissem duas ontologias e funcionassem independentemente entre si, estamos prescindindo da noção de totalidade. Esta perspectiva fragmentária e binária da socialização se encontra presente sobretudo em um feminismo que se intitula radical e que insiste na imutabilidade dos gêneros com o intuito de negar a identificação de gênero pelos sujeitos trans.

Trata-se de um perspectivismo que assume que os sujeitos só podem estabelecer suas perspectivas e consciências a partir de uma ou outra socialização que se diferem essencialmente; desta forma, a perspectiva de um ou outro (feminino ou masculino; “macho ou fêmea”) seriam essencialmente e imutavelmente distintas. E a partir da assunção desta perspectiva, se poderia rechaçar quase espontaneamente qualquer atitude de feminilidade de uma mulher trans a partir do argumento que se trataria de uma forma de identificação exterior, como se uma mulher trans pudesse se valer de atributos que lhes seriam completamente exteriores de sua própria socialização, que seria essencialmente e imutavelmente masculina.

Pensar a totalidade quanto à “socialização de gênero” significa compreender que não existem universos femininos e masculinos separados e que funcionariam de forma autônoma. Ao contrário, a aculturação para a masculinidade exige necessariamente a internalização da negação da feminilidade e a aculturação da feminilidade exige a internalização negação da masculinidade. Portanto, a socialização é necessariamente relacional e negativa na forma como constitui a sua totalidade, no sentido em que ela garante sua substância pela negação do contrário.

A totalidade abarca a síntese dos contrários, ou seja, o masculino e o feminino, na forma como se atribuem expectativas sociais quanto ao gênero, comporta dialeticamente o seu próprio contrário. É por isso que não faz o menor sentido defender que a socialização de mulheres trans é masculina de modo imutável e defender que mulheres trans são homens “na verdade”.

Não compreender a totalidade é não compreender o movimento, ou seja, o devir. O devir minoritário quanto ao gênero é trans porque é a transgeneridade que trabalha politicamente a negação de um contrário: nós pessoas trans negamos a negação que se dá a partir uma expectativa quanto ao gênero e, com isso, a partir da consideração desta totalidade, afirmamos positivamente a singularidade de nossas vidas.

20/03/2016

Percebam como o par tabu-norma impõe uma desarticulação para os discursos de resistência. Digo: o par tabu-norma nos impede de pensar efetivamente a ética quando falamos de uma militância feminista. Quando questionamos a arbitrariedade de um interdito, há quase que espontaneamente uma resposta reacionária com o intuito de apontar que este movimento se trata da constituição de uma nova norma. Ou seja, a ética que reivindica os direitos das minorias é impedida de ser pensada e realizada.

Pra deixar um exemplo: quando se milita pelo casamento gay ou simplesmente pelos modos de vidas gays os reacionários acusam de se tratar de uma “ditadura gay” que supostamente estaria obrigando as pessoas a se tornarem gays na marra. A possibilidade de existência do diferente é interpretada como ameaça e, portanto, vista negativamente como se fosse a afirmação de normas referidas ao funcionamento de um novo interdito. Ou seja, quando tentamos falar de liberdade ou do vir a ser do diferente, da possibilidade do múltiplo, o discurso reacionário interpreta através dos seus próprios termos constitutivos do binário tabu-norma: ao se questionar a arbitrariedade de um tabu se enxerga tão somente a criação de uma suposta norma.

Quando dizemos que pessoas trans também são pessoas passíveis de serem amadas, o discurso reacionário assimila isso como se tratasse de mais uma norma – as pessoas se questionarem coisas como “agora eu não me relacionar com pessoas trans é transfobia?” é sintomático do funcionamento desse discurso. Pois é através destes termos que o discurso reacionário funciona: ora tabu ora norma. Esse binário não permite pensarmos as escolhas éticas através da ordem do possível (em termos de possibilidade). Essa forma de pensar absolutiza o par tabu-norma e impede pensar de fato que as escolhas éticas são pautadas em termos de possibilidade frente às situações existenciais. As escolhas éticas devem estar expostas a um vir a ser que é condição de sua possibilidade, não estar ancoradas neste par de funcionamento entre interdito e norma.

A gente é tão aculturado pelas práticas de confissão cristãs que acabamos incorrendo uma interiorização da culpa até na militância. Isso se vê muito nos debates sobre a seletividade do desejo, quando denunciamos que pessoas trans são excluídas das possibilidades de relacionamento por exemplo. Quando as pessoas acusam as problematizações de pessoas trans de estarem supostamente “obrigando” as pessoas cis a se relacionarem com as pessoas trans eu vejo isso como um sintoma dessa interiorização de culpa nos discursos presentes na militância.

Só faz sentido você responder às problematizações transfeministas como se fossem acusações se você está passível de ver essa problematização como uma acusação que toca o seu mais profundo íntimo, a sua consciência que estaria no caso corrompida. Você só enxerga acusação a nível pessoal se você está profundamente subjetivizado pela culpa. E a culpa cristã exige com que as pessoas confessem eternamente as suas más consciências.

Se você enxerga uma crítica social como uma crítica individual há aí sintoma de algo, ou seja, o indivíduo toma para si uma crítica do social como se fosse do âmbito individual em termos de culpa e obrigação. As pessoas só podem ver “obrigação” de se relacionar com pessoas trans porque elas estão manifestando um sentimento de culpa (cristã). Você vê obrigação do desejo neste caso a partir de um referencial de subjetivação que coloque o desejo referido a uma interiorização da culpa individual. Daí é preciso responder através do ataque virulento, ou seja, é a confissão cristã fazendo efeitos aqui na militância também; a confissão aqui ganha contornos da denegação.

Quando criticamos a seletividade do desejo não estamos impondo um desejo. Não se impõem desejos como se nós criássemos desejos estranhos nas pessoas a partir de um “nada”, como se pudesse controlar o fluxo do desejo a partir de uma racionalização coletivizante. Os desejos são resultados de fluxos inconscientes. A crítica contra a seletividade do desejo não deve orientar um caminho específico do desejo (como se tratasse de uma forma bizarra de engenharia social, em que os desejos são racionalizáveis e objetiváveis segundo lógicas de representação falogocentricas), mas permitir que os fluxos até então impensados (e portanto, estigmatizados como “impossíveis” ou “loucos”) se realizem. É permitir os fluxos até então estancados comecem a fazer efeitos na ordem do possível, do real.

Quando dizemos que a homossexualidade não requer simetria genital e a heterossexualidade não requer assimetria não estamos obrigando que pessoas cis se relacionem com pessoas trans. Estamos falando sobre não estigmatizar as relações já existentes que envolvam as pessoas trans. Estamos falando que a simetria ou a assimetria genital não deve ser um parâmetro universal para definir (ou simbolizar) as orientações sexuais, por existirem fluxos de desejos que questionam essa forma de representação. Não é impor, é permitir o novo. Não é obrigar, é libertar fluxos a partir de formas outras de representação não pautadas pela universalidade das normas cisgêneras. É neste sentido que a denúncia contra as exclusões de pessoas trans no campo do afetivo se torna tão importante.

21/03/2016

Reposição hormonal para pessoas trans é resultado das forças malévolas do capitalismo com o intuito de cooptar subjetividades destoantes da norma. Agora, se estamos falando de reposição hormonal para pessoas cis estamos falando simplesmente de um cuidado médico rotineiro e padrão. Ninguém questiona o acesso a cuidados médicos de uma pessoa cis que necessite de reposição hormonal; mas quando falamos de pessoas trans, o cenário magicamente muda. Acontece que são exatamente os mesmos cuidados, os mesmos saberes biomédicos que devem ser acionados para que todas as pessoas tenham um uso seguro destas substâncias (em que pesem as especificidades das pessoas trans). O que separa uma categoria da outra não são diferenças substanciais (neste aspecto, não é possível explicar a diferença na forma como se compreende as corporeidades cis das trans meramente por questões ‘objetivas’), mas sim aspectos ideológicos e políticos que determinam uma diferença a nível simbólico.

Percebem como o cissexismo guia o olhar seletivo neste caso? Fácil fazer uma suposta crítica ao capitalismo caindo em cima de uma população vulnerável, excluída, desassistida e completamente descompreendida pelas políticas de representação – e pela própria medicina, vale ressaltar (pessoas trans tem que recorrer a “centros especializados” circunscritos a pouquíssimos locais do país, enquanto que pessoas cis podem usufruir de cuidado médico em qualquer local, na exata medida em que suas demandas não vão ser neglicenciadas pelo saber e poder biomédico). Criticar a norma cis que sustenta o capitalismo essas pessoas não querem de fato. Abolir o gênero de travestis e transexuais tá tendo à rodo; “criticar” – eufemismo para subjugar – as expressões e identidades de travestis e transexuais é o que faz a sociedade transfóbica e ironicamente grupelhos que julgam representar o feminismo e o movimento gay em críticas pra lá de capengas como esta que me referi acima.

25/03/2016

O que significa “mutilação”? Muitas pessoas transfóbicas utilizam este termo para se referirem aos processos de alteração corporal que pessoas trans podem escolher fazer. Numa rápida observação vemos que não se trata de um uso supostamente neutro. As pessoas usam esse termo pra se referir de uma maneira pejorativa tanto aos corpos como às escolhas das pessoas trans. Não existe uma definição meramente “neutra” de mutilação, assim como a mutilação não ser exatamente uma afecção absolutamente objetiva aos corpos das pessoas. A objetividade de um corpo mutilado é apenas parcial, vejamos o porquê.

Mutilação não existe sem se referir a uma alteração – a priori não desejada – no corpo que tenha causado danos para determinada pessoa. Mas aí que a objetividade deste conceito é apenas relativa: se é fato de que para haver mutilação é necessário que exista uma alteração de uma parte de um corpo, é igualmente correto que uma mesma alteração, para diferentes sujeitos, pode ser ou não uma mutilação. Ou seja, é necessário haver não apenas uma alteração em um corpo, é preciso que o sujeito veja essa alteração como causadora de algum tipo de sofrimento para si. E isto implica considerar a consciência que o sujeito faz de si mesmo.

Ou seja, dizer que pessoas trans que fazem alterações corporais necessariamente se mutilam é ignorar que pessoas trans são sujeitos; é o mesmo que ignorar que pessoas trans tenham consciência de si mesmas. E aqui vai uma dica: desconsiderar o estatuto de sujeito para pessoas trans – e transforma-las em objeto a partir de uma visão transcendental cisgênera – é o que faz a transfobia e o cissexismo.

26/03/2016

É óbvio que o movimento a favor de cotas em universidades deseja que o problema de base da educação seja resolvido. Mas acontece uma coisa: lutar por cotas não implica negligenciar a educação básica. Há também efeito retroativo; há também necessidade de representação imediata; há também necessidade de políticas paliativas; há necessidade da universidade não ignorar um segmento da população que é sistematicamente excluído; há a importância destes sujeitos começarem a produzir conhecimento sobre sua própria situação de exclusão nos espaços acadêmicos.

Engraçado eu ver um video com uma pessoa contra cotas para pessoas trans usando o argumento de que é necessário lutar pela educação básica. Vemos o mesmíssimo argumento contra as cotas para a população negra, de que seria preciso lutar pela educação de qualidade desde a base. Isso é óbvio. É óbvio que é preciso lutar para que travestis e transexuais acessem e tenham permanência na educação básica. Mas isso não apaga o fato de que essa população também é sistematicamente expulsa do ensino superior. Há alojamento para travestis? Há repúblicas e pensionatos para travestis? Há possibilidade de travestis se manterem em universidades, condições, além de financeiras, também sociais?

Acontece que o mundo não é uma lógica linear entre coisas que devem ser feitas antes e outras depois. Não é necessário lutar primeiro pela educação básica pra só depois lutar no nível superior. Acontece que a gente vive pra hoje também. Neste debate, é preciso compreender objetivamente a ausência de pessoas trans nas universidades públicas como um problema específico. Infelizmente nós ainda contamos com os dedos das mãos as pessoas trans que estão inseridas. Isso é sintoma bastante evidente de que sem políticas afirmativas, essa situação não vai se modificar espontaneamente.

27/03/2016

Imagina que doido se a gente usasse fogo contra fogo e a partir de então elencássemos alguns critérios para estabelecer o que é mulher “de verdade” a partir das especificidades trans. Quer dizer, porque agora não vamos estabelecer que as vivências específicas de pessoas trans sejam o novo universal do ser humano? Mulher de verdade seria aquela que sofre diretamente com o estigma que recai sobre travestis. Mulher de verdade é aquela que passou ou poderia ter passado por uma experiência de expulsão familiar em virtude de transfobia. Mulher de verdade é aquela que é exposta a passar por controles de laudos que atestam um distúrbio mental. Mulher de verdade seria aquela que encontrasse dificuldades na inserção no mercado de trabalho em virtude da sistemática expulsão de travestis destes espaços. Mulher de verdade é aquela que passou pela experiência de negação de sua existência. Ou seja, a travesti passa a ser o novo modelo de mulher de verdade, na exata medida de suas experiências específicas que decorrem da negação do seu estatuto de verdade enquanto ser mulher.

Mas a gente sabe que não precisamos fazer isso. Isso porque as diferenças não precisam ser usadas pra estabelecer critérios de exclusão nem de negação de existências específicas. Porque a gente sabe que as diferenças que decorrem das especificidades das vivências das pessoas estão subordinadas à totalidade da sociedade enquanto forma da manutenção das opressões, de modo em que é inútil estabelecer hierarquias entre as diferentes questões específicas que concernem a determinado grupo social.

28/03/2016

A hipocrisia de transfóbicos fede. Quando eles falam que qualquer política pública (ou mesmo privada) de atendimento às pessoas trans, em especial as mais jovens, se resumiria a um suposto “entupir as crianças de hormônios”, estas pessoas provam que não estão nem aí se de fato as pessoas trans estão se “entupindo de hormônios”. Quem luta contra tais políticas falando coisas como essa não está em nenhum momento de fato se preocupando com a saúde de pessoas trans.

O que essas pessoas querem é continuar com a sub-cidadania das pessoas trans; elas querem que pessoas trans continuem com suas vidas que já são precárias, com total falta de atendimento médico especializado. Ou seja, elas querem mesmo é, ao falar que ativistas trans querem que “crianças se entupam de hormônios”, que as pessoas trans continuem se “entupindo de hormônios” agora com a isenção de responsabilização do Estado e da categoria médica. Elas querem que pessoas trans se entupam de hormônios e ainda sejam culpabilizadas pela escolha que tiveram a partir de uma total situação de negligência do Estado e da sociedade. Querem continuar empurrando as pessoas trans para a clandestinidade, a marginalidade, a cidadania de gambiarra. Isso porque, segundo elas, pessoas trans não deveriam existir para início de conversa.

Deixa eu te contar uma coisa: é justamente para que pessoas não se “entupam de hormônios” que a gente luta para que as especificidade das pessoas trans sejam garantidas no SUS. É justamente para ninguém tenha que fazer uso de hormônios por conta própria que os profissionais devem aprender sobre como cuidar das pessoas trans. É justamente pra diminuir os danos em decorrência do uso destas substâncias que a gente luta para que haja atendimento real sem julgamentos morais e que se preze por coisas como: redução de danos, integralidade, autonomia dos sujeitos sobre seus corpos, universalidade, gratuidade… Políticas proibicionistas ou que tentem empurrar a sujeira por debaixo do tapeta não ajudam. As pessoas se entopem de hormônios não por uma questão da moral individual, mas em decorrência de um descaso com toda uma população historicamente desamparada em virtude de suas especificidades.

As pessoas se entopem de hormônio porque não estão recebendo atendimento adequado. Não é porque as pessoas trans são alienadas. É porque há um descaso público com a saúde de pessoas trans. Aprenda isso antes de falar verdadeiros impropérios. Leiam os guias de cuidados da WPATH antes de falar que ativistas trans querem entupir pessoas inocentes e desavisadas de hormônios.

29/03/2016

Depois do último post da Travesti Reflexiva, repensei sobre a questão da autonomia e da crítica às escolhas individuais no feminismo. Essa questão equívoca no feminismo nos remete a compreensão de como a estrutura de dominação funciona a partir de sua totalidade. Quero dizer: sabe qual é o problema com certas “críticas” ou “problematizações” que se fazem em nome do feminismo? É quando em nome destas críticas se estabelece uma divisão entre quem estaria reproduzindo opressões em suas escolhas individuais e quem supostamente não estaria.

Poderia-se objetar que quando se faz a crítica aos estereótipos e a autonomia dos sujeitos frente a imposição destes esterótipos não estaríamos pressupondo sujeitos livres. Mas aí é que está: você está fazendo justamente essa crítica a partir de uma posição de um sujeito livre inconscientemente.

Aí caímos facilmente num paradoxo que frequentemente funciona pela seu apagamento: se parece bastante óbvio que uma mulher que faça alguma “reprodução” dos esterótipos não seja livre, aquelas que estariam subvertendo a norma também não são livres da estrutura. Eis o problema com esse tipo de crítica: todo e qualquer comportamento está subordinado a uma estrutura machista, até mesmo a negação dos estereótipos (a subversão).

Aí caímos facilmente na paranoia culpabilizante. Se todo e qualquer comportamento pode ser interpretado fazendo referência a uma estrutura de dominação, caímos na política como uma neurose obsessiva, onde o que importa é a expiação de culpas através de apontamentos individuais. Se todo e qualquer comportamento pode ser interpretado como “normativo”, a salvação se dará a partir do discurso de verdade do próprio sujeito que tenta apagar a sua posição como interpelada pela estrutura de dominação. Se você aponta um outro que apenas reproduz a norma, você elege de forma arrogante sua própria posição como supostamente neutra em relação a estas normas. Você coloniza o feminismo pelo poder pastoral: as mulheres precisam de “salvação” enquanto indivíduos pertencentes a um rebanho de ovelhas.

Acontece que a própria negação dos estereótipos de gênero está também inscrita na totalidade da estrutura da nossa sociedade. A subversão não paira sobre um outro mundo, um universo virtual da crítica racional.

A pergunta que fica é: qual posição eu posso falar para fazer essa crítica se não existe ponto de vista que não esteja desde sempre vinculado a esta estrutura? É fácil apontar que mulheres que usam batom, se depilam, se maquiam, etc, reproduzem “estereótipos de gênero”. Mas não vamos nos iludir: não se maquiar, não se depilar, etc também são ações que se dão pela negação destes estereótipos e também se vinculam a esta mesma totalidade.

Como eu disse no meu texto anterior: a totalidade abarca o movimento causado pelas sínteses dos contrários. Não existe norma sem subversão, na mesma medida em que não existe poder sem resistência. Não existem “reprodução” e “transformação/quebra” em universos diferentes. A reprodução e a quebra funcionam num mesmo mundo.

A crítica que eu faço é acerca justamente do abandono da noção de totalidade em críticas rasteiras que se fazem acerca dos “estereótipos de gênero”. É preciso compreender que o nosso local de fala se vincula necessariamente a partir desta totalidade contraditória. Ou seja: nós não estamos numa posição além, enquanto feministas, para criticar as escolhas de mulheres que reproduzem estereótipos. Justamente porque, em seu funcionamento, a estrutura interpela a todos nós e através de suas contradições, permite o movimento em direção a mudança e resistência.

08/04/2016

Quando vejo gente falar que a Amara está “glamourizando” a prostituição (afinal, o que seria isso??!) o que está em jogo na verdade é um julgamento moral pela escolha que ela fez. Sim, Amara é exceção, porque ela não se prostitui apenas pela necessidade de sobrevivência. Que tal lutar por um mundo onde todas as pessoas possam também ter a possibilidade desta escolha? Porque não lutar por um mundo onde as escolhas sejam possíveis?

O que se põe em jogo nestas críticas é o fato de que, por não precisar, Amara não deveria escolher a prostituição. Ou seja, essas mesmas pessoas que bradam que o liberalismo e a escolha individual não salvam estão na verdade chafurdadas numa crítica moralizante da escolha individual. E olha que essa noção estrita sobre “necessitar” é bastante ambígua: nós vivemos, enquanto seres de cultura, apenas pela necessidade estrita? Julgam a Amara justamente por ela não precisar e, mesmo assim, escolher se prostituir. Mas eu me pergunto: o fato de poder escolher é condição de impossibilidade para se lutar para que outras pessoas também tenham essa possibilidade de escolha?

E com isso essas pessoas lutam não para a abolição da violência ou exploração; o que estas pessoas querem é que as pessoas como Amara NÃO tenham possibilidade de escolha. Essas pessoas não estão lutando para a melhoria de vida de prostitutas; elas estão lutando para que mulheres não tenham a possibilidade de escolha, ao atrelar à prostituição não à esfera de luta por direitos trabalhistas, mas à esfera do julgamento moral(izante) e individual. Pessoas que dizem criticar essa suposta “romantização” e “glomurização” da prostituição estão na verdade fetichizando a pobreza e a condição de vulnerabilidade com que muitas prostitutas estão expostas. Essas pessoas não querem que prostitutas, a partir de sua situação concreta de existência, resistam e transformem suas realidades. Essas pessoas querem tutelar mulheres e travestis. Há romantização e glamourização da pobreza no tutelamento de pessoas.

Não existe “glamurização” da prostituição quando há luta por melhoria dos direitos destas pessoas que estão neste trabalho. Não há “romantização” quando estas mesmas militantes são as primeiras a criticarem a naturalização com que as violências acontecem nestes espaços. Não há “glamourização” quando há mobilização de prostitutas por seus direitos a partir de suas condições concretas de existência.

Há violência sim quando se advoga por práticas punitivistas e proibicionistas. Há fetichização, romantização e glamourização na condição de pobreza a partir do momento em que você pressupõe que a luta deva ser para que mulheres não possam ter possibilidade de escolha. Há romantização e glamourização da prostituição quando se afirma que prostitutas são pessoas necessariamente alienadas e sem agência e precisariam, portanto, serem tuteladas por medidas repressivas e serem “salvas” da prostituição. Há romantização e glamorização quando se pressupõe que prostitutas não deveriam existir. Ao pressupor isto, se ignora a própria possibilidade de tomada de consciência crítica e de um sujeito transformador da sua própria realidade. Há romantização e glamourização da pobreza e vulnerabilidade social quando se silencia as próprias vozes e demandas das prostitutas por uma vida melhor.

10/04/2016

Uma coisa comum em discussões pelo facebook são debates que se descolam das próprias questões que as pessoas julgam debater. Se treta muito sobre se fulano ou siclano teriam lugar de fala pra falar sobre determinado assunto mas se esquece sobre o que exatamente fulano ou siclano estão falando. Ou seja, é como se nós pudêssemos discutir o que fulano fala apenas a partir de um local que ele ocupa.

Quer dizer, o local de fala acaba se deslocando do próprio conteúdo da fala e vemos discussões infrutíferas sendo feitas sobre locais de fala. Se fazem altas abstrações sobre os locais de fala – sobre quem pode falar ou não a partir de certos locais – e se acaba ignorando completamente o que deveria ser base de toda essa discussão: o que se fala a partir destes locais de fala? Quais argumentos; quais posicionamentos políticos; quais perspectivas e filiações históricas são mobilizadas, transformadas e tensionadas nas falas? Isto acaba sendo ignorado… e se ignorar isto nas discussões de locais de fala é bem problemático. Viram abstrações vazias de proposição política.

O local de fala como conceito antecipou o próprio conteúdo – ou discurso – da fala nestas discussões. O local de fala, por si só, é vazio em termos de discurso. Isto porque o discurso não é reflexo de um local de fala.

O local de fala do subalterno pode servir como um privilégio epistêmico. O local de fala daquele que é silenciado é capaz de oferecer, a partir de uma perspectiva privilegiada de um ponto de vista até então silenciado, novas questões para o debate. Ao se colocar novas questões para o debate, fazemos história, há uma ruptura epistemológica, pois novas questões emergem para a pauta das discussões. E o debate não é exclusivo de sujeitos que ocupam x ou y locais de fala: o debate é geral, é pra afetar todos os sujeitos. E este processo não é imediato, não é mero reflexo: é feito a partir de alteridade, teoria, argumentação. Pra constituir um discurso a partir de locais de fala, é preciso mediação do sujeito com sua fala a partir de um posicionamento ético. Precismos portanto ficar atentos: discutir local de fala sem discutir a própria fala – seu aspecto discursivo, histórico – é discutir o nada acerca de nada.

22/04/2016

Tô vendo que tem transfobia (in)direta rolando em críticas a homens que supostamente estariam “roubando protagonismo” nessa campanha do recatada e do lar. Aí eu fico pensando: a noção de protagonismo está sendo muito mais usada pra estabelecer um sujeito legítimo porta voz de determinado discurso no intuito de fazer calar um sujeito pretensamente ilegítimo do que propriamente fazer ecoar discursos de resistência. Protagonismo está sendo mais utilizado pra estabelecer quem é o “ilegítimo” do que propriamente fazer ecoar um discurso de resistência. Eu vejo a cada dia a noção de protagonismo ser recapitulado por discurso reacionário mesmo. Eu não to vendo noção de protagonismo ser usada pra fazer com que novas vozes possam ecoar e fazer efeitos na sociedade; to vendo sim noção de protagonismo ser usada com um sentido puramente reativo que deseja tão somente estabelecer um limite a prioristico entre quem deve necessariamente se calar. E calar por se calar, devo dizer não é nem um pouco útil pra militância que se propõe resistir às opressões.

Eu me pergunto qual é a diferença entre um discurso transfóbico que diz que mulheres trans “se apropriam” da feminilidade – e que por isso estariam “banalizando” o “ser mulher” – e certas “críticas” que eu leio sobre homens cis se vestirem de mulheres. Dizer que homens cis que se vestem de mulheres são algo necessariamente “errado” dá um passo pra afirmar o mesmo acerca de mulheres trans; afinal, pra muita gente mulher trans é nada mais nada menos de que um “homem que se veste de mulher”.

Eu me pergunto também em que diabos de lugar chegamos em que se discute a noção de protagonismo na circulação de imagens em uma campanha virtual. Em que lugar chegamos ao dizer que homens roubam protagonismo de mulher quando se vestem de mulheres em campanhas de facebook? Eu me pergunto a que ponto chegamos em discussões que se pretendem reivindicar a noção de protagonismo que acabam caindo não somente em essencialismo, mas numa inércia em termos de reivindicação política concretas.

23/04/2016

O estigma que recai sobre “homens que se vestem de mulher” provem da transfobia. Então se você inconscientemente reproduz uma imagem estigmatizante acerca de “homens que se vestem de mulher” você está indiretamente reforçando transfobia. Praticar ofensas contra “homens que se vestem de mulher” não é revolucionário nem “misândrico”.

A imagem do “homem que se veste de mulher” é tomada muitas vezes como evidência por um feminismo que se esquece de fazer recortes acerca das vivências trans. A imagem que o “homem que se veste de mulher” tem em certos feminismos é carregada de muito sentido e em grande parte das vezes, são sentidos de abjeção em torno do feminino em corpos e identidades que foram designados ao nascer como homens. Ou seja, essa imagem que se toma como evidência sobre “homens que se vestem de mulher” está carregada de representações muitas vezes pejorativas que fazem sobretudo travestis e mulheres trans serem vistas como abjetas. Então discutir a imagem que fazemos de “homens que se vestem de mulher” é tarefa de um recorte de um feminismo que se propõe crítico à transfobia.

Esta imagem carregada de significações prévias vai colocar sob suspeita toda e qualquer forma de identificação do feminino por pessoas trans e por pessoas que foram designadas homem ao nascer. É uma forma de interpretar estas vivências que imputa um estigma 1) através da ideia de que “homens que se vestem de mulher” estariam “banalizando” o ser mulher por supostamente estarem “resumindo” a mulher a estereótipos ou a roupas; 2) através uma noção vaga acerca de fetiche.

Mas percebam que estas supostas “críticas” que se fazem sobre “homens que se vestem de mulheres” por mais que estejam com um verniz de crítica feminista (inclusive denominada “radical”), só se sustentam, na verdade, a partir da assunção de um imaginário estereotipado sobre vivências trans e sobre vivências trans de pessoas que foram designadas homens e vivenciam formas de feminilidade. Estas “críticas” só se sustentam a partir de uma visão pejorativa da própria transgeneridade.

É importante eu ressaltar isso enquanto mulher trans e espero que mais mulheres trans e travestis passem a incorporar este aspecto em suas análises e críticas. Enquanto houver esse estigma que recai sobre “homens que se vestem de mulher”, eu estarei sendo estigmatizada enquanto mulher trans. Justamente porque são estes mesmos estigmas que fazem sustentar a transfobia contra pessoas trans, em especial, travestis e mulheres trans.

Com isso quero dizer: precisamos desconstruir as significações prévias, o imaginário estereotipado e totalizante, acerca da imagem que fazemos espontaneamente do “homem que se veste de mulher”.

Se a possibilidade de acontecer algum crime necessitasse que a gente proibisse pessoas de compartilhar espaços – como frequentemente se diz aí quando falamos do uso do banheiro feminino por mulheres trans – a gente não poderia, a rigor, nem sair de casa. Existiria uma lei em que, para que não houvesse possibilidade de existir assédio, as pessoas teriam que viver cada uma em sua bolha. Imagina que louco a gente começar a apelar para a existência de mulheres cis psicopatas e assassinas pra dai concluir que mulheres cis não podem compartilhar o mesmo banheiro.

Estou evidentemente levando a cabo as últimas consequências desse discurso que exclui pessoas trans de espaços de uma forma tão espontânea pra que, quem sabe, as pessoas comecem a se questionar da espontaneidade na forma como pessoas trans são excluídas e vistas como “perigos em potencial”. Se esquecem que pessoas trans são cidadãs, e todo cidadão, até onde eu saiba, goza de um direito que se refere a sua presunção de inocência e do direito de ir e vir. Isso sem contar com algo que deveria soar básico no que tange o respeito a individualidade: expulsar alguém de um espaço por conta de sua identidade ou aparência deveria soar necessariamente fascista. Infelizmente não acontece com pessoas trans, e nós temos que repetir o mantra de que pessoas trans são pessoas também.

03/05/2016

O peixe morre pela boca mesmo. Hoje eu ouvi falar que a prostituição que envolve uma mulher cis com um cliente homem cis é necessariamente opressora e que precisaria ser portanto abolida. Até aí tudo bem, a gente ouve muito esse argumento que o movimento de prostitutas já vem contra-argumentando, afirmando como esta posição na verdade ignora a luta concreta por melhores condições de trabalho das prostitutas.

Curioso mesmo é ver como a pessoa coloca a situação de mulheres trans e travestis implicitamente como uma situação “menos séria”. Vale ressaltar que a mesma pessoa colocou que a prostituição entre duas mulheres e entre dois homens não seria opressora (vai entender o raciocínio, né? mas é aquele lance de absolutizar a estrutura de dominação hierárquica entre homens e mulheres como algo imutável e ignorar como de fato as opressões funcionam em sociedade como algo estruturante, e não meramente individual; aliás, eu poderia citar n situações opressoras envolvendo uma relação de prostituição entre dois homens e duas mulheres (aqui entrando a análise de diversas intersecções, como classe, raça, etc), afinal, se existe violência na prostituição entre homens e mulheres, não há motivos para negar a possibilidade destas violências também se reproduzirem numa relação entre homens e entre mulheres).

Ouvi dizer que mulheres cis são “desde sempre” oprimidas para serem objetos sexuais e o que ficava implícito na fala da pessoa era que mulheres travestis e transexuais não seriam “desde sempre” oprimidas – algo que coaduna muito com a noção de que mulheres trans e travestis são “na verdade” homens, ou que pra efeito de conversa foram de alguma forma essencialmente homens. Tal pensamento de certa forma culpabiliza mesmo a existência de mulheres trans e travestis pela opressão que sofrem, ao implicitamente afirmar que a transfobia não é opressão estruturante em nossa sociedade – como se apelar para a existência enquanto fato individual de mulheres trans antes da transição, vistas enquanto “homens”, provasse alguma coisa enquanto análise e crítica social.

Ora, quero saber então em qual momento idílico do passado transexuais e travestis tiveram representatividade social e não foram objetificadas! Parece que a gente tem que lembrar desde sempre o óbvio pra certas pessoas: a transgeneridade foi “desde sempre” alocada na posição de doença, de loucura, do interdito absoluto, da criminalidade, da abjeção. Se você quer falar de um grupo de mulheres que mais sofre com a falta de oportunidades e que encontra na prostituição precária a única forma de sobrevivência você deveria justamente falar do grupo de mulheres trans e travestis.

Pessoas trans não passam a sofrer com transfobia porque elas decidem transicionar e só a partir daí sofrerem com opressão enquanto indivíduos pontuais na sociedade. Transfobia e cissexismo estão desde sempre – frise bem a expressão – na base do funcionamento das normas de gênero. Transfobia não se origina em casos pontuais de violência por conta indivíduos que questionam a norma de gênero de forma contingencial. Ao contrário: há desde sempre a naturalização e justificação cínica da exclusão de pessoas trans da sociedade. Já passou da hora do feminismo compreender o funcionamento da transfobia como estruturante das normas de gênero, sob pena de incorrer, mesmo que inconscientemente, na reiteração destas exclusões.

20/05/2016

Comentário que fiz acerca da morte da ativista trans paquistanesa Alisha. Leia também mais sobre o caso em: http://www.nlucon.com/2016/05/mundo-ativista-trans-de-23-anos-e.html

Das inúmeras barbáries do cotidiano… mais um caso. Eu compartilhei na página do transfeminismo um video que estava denunciando o descaso de um hospital sobre o atendimento de uma mulher transexual baleada no Paquistão. Essa mulher tinha levado 6 tiros por um grupo de extermínio contra pessoas trans daquele país e ao ser levada ao hospital… visivelmente numa emergência, os médicos literalmente estavam mais preocupados em saber onde colocar a mulher – se numa ala masculina ou feminina – do que propriamente salvar sua vida. O preço dessa “hesitação” foi ela perder sangue até morrer. “Moral” da história: ter acesso livre a espaços separados por gêneros binários é um privilégio – que pode inclusive custar a sua vida.

Como se já não bastasse o teor absurdo desse caso – e aqui cabe uma ressalva, tais absurdos são terrivelmente banalizados, no sentido de serem naturalizados – justamente por serem naturalizados que se tornam barbáries. Afinal de contas, em que ala vai uma pessoa cujo gênero não é inteligível para a sociedade cisgênera e binária? Tal “controversa” não cede nem na hora da iminência da morte, da emergência, afinal, o cistema é absoluto, e os direitos das minorias (e suas vidas), ainda não.

Mas continuando… como se não bastasse o caso em si, eis que eu vejo nos comentários do vídeo um sujeito falando em inglês com a maior naturalidade de que a culpa por essa morte ter acontecido não era do hospital e dos médicos, mas das pessoas trans. Afinal, se a gente não tivesse “escolhido” “mudar” de gênero, nada disso teria acontecido, não é mesmo? A racionalização da culpabilização da vítima, tão presente nos casos de estupro por exemplo, é um instrumento discursivo de legitimação de diversas violências.

É de coisas como essa que a gente tem que tomar cuidado. E combater discursivamente. São racionalizações desse tipo que mascaram a irracionalidade da culpabilização da vítima. São racionalidades estas que sustentam barbáries.

21/05/2016

Em se falando de “potencial”, toda pessoa pode fazer alguma atividade ilícita, incluindo estupro. Em termos de “potencialidade” qualquer pessoa pode fazer alguma coisa ruim, incluindo estupro. Então, não to falando pra desconsiderar a estrutura machista que legitima o estupro como normal; eu acho que a gente tem que tomar certo cuidado com afirmações que são jogadas e repetidas ao vento, que, por mais que se deem em um contexto legítimo de desabafo frente a um caso absurdo de comoção nacional que demonstra como a sociedade reproduz violência, não é adequado para a efetiva compreensão e mudança da sociedade.

Eu to falando justamente pra levar em consideração que a legitimação e reprodução dessas violências se dão em caráter histórico e cultural e não são portanto, essências intransponíveis. Afirmações do tipo “todo homem é estuprador” são compreensíveis de ponto de vista de uma reação frente ao absurdo dessas violências; mas não são justificáveis de acordo com uma análise feminista da sociedade, porque dá a entender que a estrutura machista é intransponível, não passível de questionamento e mudança.

Eu acho que questionar a evidência de expressões como “todo homem estuprador” não se resume um suposto “not all men” como forma de desresponsabilizar os homens. Também não é tirar o foco da necessária indignação do que aconteceu e do processo de indignação coletiva. Ao contrário: justamente por eu acreditar na mudança da sociedade através do feminismo que eu acredito que nem todo homem deve e será um “estuprador em potencial”. Se queremos de fato responsabilizar os homens pela cultura de estupro temos que levar radicalmente a ideia de que eles não sejam e não devem ser estupradores em potencial. Se queremos responsabilizar seriamente os homens pela cultura de estupro nós temos não apenas que acreditar que leis mais duras sejam aplicadas, que as instituições sejam virtuosas, mas também temos que acreditar na ética e nas transformações micro-subjetivas. Temos que acreditar, se queremos transformação de algo que acreditamos mutável (porque histórico e social, e não natural!), que a empatia é sim possível e o processo de naturalização de violência não é nenhuma estrutura fechada sobre si, como se fosse intransponível.

22/05/2016

Parece que tem um “feminismo” que de tanto denunciar que as mulheres não tem possibilidade de escolha na sociedade que acaba por ele mesmo desejar que mulheres não podem e não devem ter escolha (e nem ao menos podem lutar por ela); ou seja, o feminismo deixa de ter o papel de crítica da sociedade para a sua efetiva transformação libertadora para o papel de reprodução dessa mesma impossibilidade de escolha individual. O feminismo deixa de ser combativo e propositivo para ser meramente constatativo e reativo, no sentido de reacionário mesmo. E tem muito de feminismo dito “radical” nessa história.

Parece que tem gente que em nome desse tal “feminismo radical” faz questão lutar para que mulheres não tenham possibilidade de terem escolha e autonomia sobre si mesmas, já que isso seria coisa de um “liberalismo” malvadão. Quer dizer, lutar para que mulheres possam escolher a partir de suas realidades concretas de vida não pode, já que é “liberalismo”. E pior de tudo, o nível de reativismo desse feminismo é tão grande que até a felicidade e o “se sentir bem” foram rifadas entregues de mão beijadas para um tal liberalismo imaginário.

Será que essas mesmas “feministas” não se deram conta que o exato mesmo argumento que elas usam pode ser mobilizado contra a legalização do aborto, por exemplo? Afinal, se nenhuma mulher deve – e não pode – ter escolha sobre seu próprio corpo então as mulheres não poderiam escolher por fazer um aborto. Se uma mulher enquanto indivíduo não pode consentir pelo destino do seu corpo qual instituição deve ocupar essa incumbência? A igreja ou o estado comandado por homens cis?

Gente, vamos lá… defender liberdades individuais – e vejam, esses direitos individuais tem repercussão coletiva também – não é “liberalismo”. Lutar para que as pessoas possam ter reais condições de escolha sobre seus corpos não é liberalismo. Parem de usar “feminismo liberal” e “libfem” de maneira completamente distorcida; já que essa distorção acaba por depor contra os próprios princípios que se julgava defender. Essa distorção depõe contra o seu próprio feminismo.

23/05/2016

Vi a história de um ator famoso que foi transfóbico. Nem quero saber de detalhes sobre o caso, mas de falar sobre como se pressupõe no geral com tanta evidência de que se relacionar com pessoas trans é algo indesejado. Nós pessoas trans somos o “perigo” da “enganação” frente às expectativas de pessoas cisgêneras que pressupõem a única existência de pessoas tendo norte a cisgeneridade como normalidade do humano (pobrezinhas, risos). Talvez por isso se tenha tanta dificuldade em entender que a transfobia do caso não foi somente em virtude do uso do termo “traveco”, mas pelo fato do ator pressupor que se relacionar com uma travesti e transexual fosse algo de menor valor e mesmo abjeto.

Proponho que as pessoas cis se exponham à alteridade, imaginem mesmo que por um segundo o que significaria a mesma fala do ator cisgênero se aplicasse quanto à pessoas negras, gordas, com deficiência, etc.

A gente tem que entender esse caso como um sintoma do cissexismo. Insisto no termo sintoma porque é um tipo de discurso transfóbico que de tão naturalizado, passa como se não fosse nada, como se não fosse de fato transfobia, já que se toma como uma evidência tão grande de que pessoas trans são “gente indesejada” (porque errada, abjeta, etc). Gente, isso não tem nada a ver com “gosto pessoal”. Aliás, se fosse justamente questão de gosto, gostar de travesti e transexual não seria sinônimo de fetiche ou encarado como algo excepcional. Se fosse realmente uma questão de gosto, a fala do ator cisgênero nem ao menos faria sentido.

11/06/2016

Gente, eu vi algumas pessoas desse grupo usando a existência do discurso da psiquiatria e psicologia pra defender uma distinção essencial, imutável e a-histórica sobre travestis e transexuais. Gente, se vocês forem estudar a fundo o discurso tanto da psiquiatria, da medicina e da psicologia irão ver que não se trata de um discurso de verdade incontestável sobre as identidades dos sujeitos. Travestilidade e transexualidade são identidades, e identidades são construções de sujeitos sociais e históricos.

O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que por mais que exista uma noção sobre travesti não ter disforia sobre seu genital e transexual sim, isso não encerra as nossas construções identitárias. Se tiver transexual sem disforia genital, se tiver travesti operada, vão dizer que elas estão erradas em suas construções subjetivas? Aliás, qual é a necessidade, pra início de conversa, em dizer que travesti não tem disforia e transexual tem? Seria pra visibilizar as demandas das travestis ou invisibilizar? Seria pra reconhecer a necessidade das demandas das travestis ou dizer que só transexual é a pessoa trans de verdade e única portanto a ser reconhecida pela medicina? É sobre isso que a gente tem que discutir: politizar essas diferenças identitárias. Essas diferenças não existem num vácuo da psiquiatria e da psicologia como verdades imutáveis. Nossas identidades existem para além das clínicas, dos divãs, dos hospitais. Os discursos da psicologia e da psiquiatria não estão imunes às relações de poder que podem estar estigmatizando certo grupo de pessoas em virtude de certas normas. Vamos ficar atentas a isso. E pessoal, por favor… travestilidade também é uma identidade trans, travestis também são pessoas trans.

Falamos em diferença entre travestis e transexuais na medida em que a igualdade iria apagar nossas demandas específicas, e falamos que travestis e transexuais são iguais na medida em que a diferença seria mobilizada para reforçar estigmas e exclusões. É neste aspecto que a fala de Boaventura de Sousa Santos é tão sagaz:

“…temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.

15/06/2016

Sempre que um ataque homofóbico “notável” acontece, especulações acerca da sexualidade do agressor surgem. Se tecem hipóteses de que a homofobia e estes ataques homofóbicos foram motivados pelo fato do agressor supostamente estar reprimindo sua sexualidade. Há um tempo eu já tinha apontado como é uma explicação rasteira ou uma vulgata de uma interpretação psicanalista reducionista já que implicitamente culpabiliza os próprios oprimidos por ataques como este.

Mas gostaria de pensar essa questão com um pouco mais de refinamento. O diagnóstico de que a homofobia é causada por repressão da própria sexualidade é, em certos termos, verdadeira. São as conclusões que orientam as proposições e soluções políticas que a gente toma a partir desse diagnóstico que não são tão evidentes. Acontece é que dependendo de como entendemos questões como a repressão, sexualidade e normas, tecemos determinadas conclusões acerca desse tipo de violência. Com isso quero dizer que a partir deste diagnóstico se pode tecer conclusões díspares (algumas equivocadas, outras não) a partir de qual perspectiva teórica se tem acerca destas questões.

Primeiro, se pode concluir que a “culpa” da homofobia é dos próprios homossexuais, por exemplo, de forma a colocar a posição da heterossexualidade como algo impensado, naturalizado. Como se a própria heterossexualidade compulsória não fosse constitutiva do fato de ter havido repressão sexual de algum sujeito. Esta sim seria uma conclusão inadequada que se faz a partir de um diagnóstico parcialmente correto. Tal posição é típica da pessoa heterossexual que quer se eximir de um debate aprofundando sobre a questão, preferindo respostas prontas, tirando a sua própria constituição subjetiva da reta.

Por isso nestas discussões é importante acionar o debate teórico que fazemos acerca do que significa uma identidade (seja sexual ou de outra natureza) e como um sujeito se subjetiva tendo em vista uma relação com as normas, para poder articular de forma correta a questão das formas de subjetivação e a totalidade de um funcionamento social. A teoria acerca das identidades afirma que uma identidade não existe por si mesma, já que a alteridade é constitutiva de sua própria unidade. É preciso entender, portanto, que a homossexualidade reprimida não existe em si mesma, mas tão somente referida a um sistema em que a heterossexualidade funciona como a norma. Por isso concluir que a homofobia seria uma problema dos homossexuais é uma conclusão equivocada.

É a sociedade como um todo que está implicada nesses ataques, que são sintomas ou efeitos de como a norma heterossexual funciona. O fato de alguém ter tido que reprimir sua homossexualidade não se circunscreve a um âmbito individual ou apenas em relação aos grupos oprimidos, é um fato, ao contrário, que se deu em virtude da totalidade da sociedade, em virtude da sociedade em si funcionar em torno da heterossexualidade compulsória.

Para concluir, acredito que vale a pena apontar como esse diagnóstico pode ser mobilizado pelos nossos discursos de resistência. Quero dizer: se entendemos que o diagnóstico da repressão sexual como causadora de ataques como vimos em Orlando, a conclusão prática que temos que tirar para que situações como esta não aconteçam mais, deve ser justamente de permitir com que os sujeitos não sejam constrangidos socialmente a reprimirem a homossexualidade (no caso): isto porque a repressão se da em nível estrutural no funcionamento da totalidade da sociedade, e não de forma fragmentária (seja no âmbito do indivíduo ou dos grupos oprimidos).

16/06/2016

Para algumas pessoas que se reivindicam feministas, a única fala legítima de uma prostituta seria daquela que não deseja ser prostituta, ou deixou a profissão. Vejam bem esse funcionamento: a prostituta só poderia falar de si na medida em que nega o seu próprio local de fala. Não deveria soar estranho? Sim, deveria. E nós temos que mostrar como acionar esse suposto local de fala neste funcionamento é falho, já que uma pessoa só pode falar a partir de um local em que se revindica em sua positividade, ou seja, se desejamos visibilizar o local de determinado sujeito, ele deve ser feito a partir de sua afirmação, e não negação.

Caberia as pessoas que internalizaram o discurso fundamentalista acerca da cura gay e se dizem “ex-gays” ou “ex-travestis” falarem sobre a luta da comunidade LGBT acionando um suposto local de fala? Talvez aí o caso fique mais evidente de que como o noção de local de fala pode ser distorcida com o intuito de distorção do próprio discurso daquele sujeito que se julgava representar. E a distorção, meus amigos, não é em favor de fato do grupo que se pretende representar, a representação é apenas na aparência, ela é fetichizada e é oca. A voz do sujeito é deslocada do real local de fala, sendo então mobilizada por um discurso com viés punitivo, de controle, de “cura” ou “salvação”, apresentando-se como se de fato pertencesse a um local de fala legítimo. Ou seja, para o discurso punitivista, fundamentalista e autoritário, a fala do Outro só pode ser legítima se o seu local de fala for negado, e portanto, deslegitimado: o Outro tem que falar a partir de uma internalização da culpa, de um “passado ruim” que teria sido superado. O local de fala passa a ser um local transitório, já que é negado em sua integralidade em favor de outra posição discursiva.

Por isso nós temos que fazer uma observação importante sobre o local de fala: a fala de um sujeito que é revindicada enquanto pertencente a algum lugar específico deve estar vinculada a um sujeito implicado de forma honesta neste local de fala.

21/06/2016

Já vi muitas pessoas que lutam por um feminismo trans-excludente dizer que elas, por serem feministas “radicais”, não deveriam aceitar mulheres trans já que não são “boazinhas”, e que, portanto, querem se desvincilhar do imaginário de uma mulher doce e prestativa que cuidaria de “todas as questões”. Ou seja, essas feministas argumentam em favor da exclusão de mulheres trans – e isso significa a exclusão da discussão política da causa trans no feminismo – apelando para a recusa de um papel de mãe imposto pela sociedade às mulheres. O que elas pressupõem nestas falas é que, para aceitar mulheres trans no feminismo, seria preciso assumir o papel estereotipado da mamãe que “cuida de todos” e de que seria revolucionário para as mulheres cis só pautarem exclusivamente suas próprias questões no feminismo construído por elas.

Ora, vejamos como este raciocínio é extremamente equivocado e pernicioso para o próprio feminismo. Primeiro: reconhecer a pauta trans não implica em assumir uma posição condescendente em relação a ela. Discutir as especificidades de um grupo social não implica a invisibilização de outras causas no feminismo. Você enquanto feminista trans inclusiva não precisa ser uma mãe das travestis: só queremos empatia, alteridade, escuta de uma realidade outra. Não é sobre assumir acriticamente um papel submisso, nós queremos aliadas e aliados para nossa luta. Discutir pautas políticas não é sobre ser “bonzinho” ou não, já que o reconhecimento por direitos de um grupo não é feito através de obras de caridade. Tal visão distorce completamente a própria política.

Tal visão também enxerga que a inclusão da pauta trans no feminismo é algo violento. Enxergar a existência trans como legítima não implica “forçar” uma aceitação. Quem diz que minorias estão “forçando” o seu modo de viver para os demais são justamente os fundamentalistas religiosos.

E segundo: nós pessoas trans não estamos pedindo permissão para discutir nossas questões no feminismo. Não precisamos de autorização de mulheres cis feministas radicais para militarmos pela nossa causa. Neste sentido, menos egocentrismo, por favor. Não estamos pedindo concessão dentro de um feminismo hostil, não estamos assumindo a posição de seres sem agência que não possuem um feminismo para chamar de seu. Nós estamos construindo um feminismo para nós, não precisamos de migalhas de gente que nos hostiliza. Nós valorizamos os bons encontros, não fazemos questão de “invadir” espaços que nos são hostis: a exceção, é claro, de espaços de exercício da cidadania que nos foram tirados em virtude de transfobia, como a família, a escola, as instituições públicas e o mercado de trabalho. De resto, não fazemos questão em fazer maus encontros: nós nos potencializamos enquanto causa política através de bons encontros no feminismo.

22/06/2016

Muitas pessoas que se dizem feministas trans-excludentes colocam o ônus do reforço dos estereótipos de gênero em pessoas trans. Desta forma, essas pessoas acabam pressupondo que defender a legitimidade das vivências das pessoas trans em suas especificidades e a luta por direitos e liberdade implicaria num reforço dos ideais normativos e binários de gênero e de que ser trans, portanto, se resumiria a um apanhado pré-estabelecido de noções normativas quanto ao gênero. Tal visão é uma distorção acerca do significa o gênero e as pessoas trans.

Primeiro temos que entender como gênero funciona para dizer em que medida algo pode “reforçar” ou “quebrar” um binário ou expectativa quanto ao gênero. Sim, a noção de performatividade de Butler irá nos ajudar a compreender este funcionamento.

Algumas pessoas acham equivocadamente que a noção de performatividade esconderia as relações de poder que constituem o gênero. Mas esta não é a intenção teórica do conceito. O conceito de performatividade nos ajuda a compreender que nenhum comportamento por si só apenas reproduz ou apenas rompe com estas expectativas. A performatividade nos dá uma forma de compreensão dialética do gênero: há ruptura na reprodução e há reprodução na ruptura. Desta forma, podemos compreender o funcionamento do gênero na sua totalidade contraditória.

Discutir essas noções teóricas são importantes, porque esta é divisão entre uma teoria que dá embasamento a políticas repressivas, de culpabilização dos sujeitos trans pelas opressões de gênero e de negação de direitos específicos desta população OU uma teoria que reconheça a alteridade em relação às pessoas trans e que portanto, reconheça a vidas trans como legítimas.

Uma teoria dialética acerca da performatividade de gênero – que eu defendi acima – entenderá que as vivências de inconformidade e de conformidade quanto ao gênero dizem respeito à totalidade do funcionamento do gênero, e portanto, não se pode dizer que pessoas trans “reproduziriam” mais o gênero do que “quebrariam” do que as pessoas cis. Isto porque não existe inconformidade e conformidade absolutos: ambas as categorias existem em co-existência necessária na forma como o gênero funciona em sua totalidade contraditória.

Uma teoria não dialética do funcionamento das normas de gênero coloca necessariamente a cisgeneridade como impensado e neutro do próprio gênero, naturalizando as formas de estar no mundo dos sujeitos cisgêneros ao passo que coloca as pessoas trans numa posição de Outras: enquanto patológicas, vidas “sem sentidos” que deveriam ser erradicadas por um projeto de engenharia social ou movimento pretensamente radical. É uma teoria que se pretende “radical” e feminista mas se alinha ao que é mais reacionário e conservador em nossa sociedade, pois não reconhece a alteridade constitutiva entre a cisgeneridade e a transgeneridade, ou seja, entre a relação dialética entre as experiências de conformidade e inconformidade quanto ao gênero.

Uma teoria dialética quanto ao funcionamento do gênero irá compreender que a posição cis não é neutra em relação ao gênero. Neste aspecto, não é possível existir um ponto de vista epistemológico supostamente neutro que possa apontar que são os sujeitos trans que apenas reproduziriam os estereótipos de gênero. Não existe posição neutra quando falamos de gênero, já que gênero, no seu funcionamento, interpela todos os sujeitos. E na sua forma de interpelação, dá margem ao movimento através das experiências tanto de inconformidade quanto de conformidade em relação às suas expectativas normativas.

23/06/2016

Em 2016 a gente ainda vê gente falando que alguém só se assume enquanto trans porque foi manipulado por discursos de cura da homossexualidade. Aquela velha história que se pretende supostamente crítica às normas heterossexuais mas caga completamente para as pessoas trans.

Hoje eu vi uma famosa pessoa transfóbica dizer que o Thammy Gretchen só se assumiu homem trans porque enquanto “lésbica” ele era muito atacado pela sociedade. Ora, primeiro que a culpa de alguém ser atacado pela sociedade é da sociedade opressora, e não de pessoas trans que escolhem transicionar. Segundo: não é uma alternativa um tanto “racional” “escolher” ser trans para fugir de violência. Será que essa pessoa não está por dentro do fato de que todas as violências e ameaças que Thammy sofria antes da transição não cessaram – ou pior, ganharam inclusive novos tons transfóbicos. E terceiro, o fato de pessoas trans estarem a todo momento tendo que encontrar a passabilidade cis para que sofram MENOS violência – frisem bem a palavra, já que a transfobia não some completamente por mais passabilidade que alguém tenha – só prova o quanto a sociedade é transfóbica, e não o contrário. O ônus da transformação social que queremos não deve recair em indivíduos, de forma a concluímos que é completamente legítimo e compreensível uma pessoa trans buscar passabilidade cis para poder viver um pouco mais confortável nesta sociedade. Quer acabar com a violência? Vamos lutar para um mundo em que pessoas não sejam constrangidas em virtude da quebra de expectativas em relação a norma cis e todas as formas de estar e se expressar no mundo não vão implicar sanções ou violências. Você não precisa atacar a transição de Thammy ou quem quer que seja para isso.

Meus caros, ser trans não é cura da homossexualidade rumo a heterossexualidade, tanto é que existem pessoas trans que são homossexuais e bissexuais. E mesmo a heterossexualidade de pessoas trans é completamente deslegitimada. Como haveria aí cura em direção à heterossexualidade sendo que a sociedade vê os gêneros das pessoas trans como falsos? Vendo os argumentos desonestos destas pessoas, até parece que a sociedade trata pessoas trans heterossexuais da mesmo forma como trata as pessoas cis. Todos sabem que não… mas algumas pessoas preferem distorcer os fatos propositalmente com a intenção de atacar a própria existência de pessoas trans.

Afirmar nossa identidade como legítima não implica uma suposta repressão interna de uma homossexualidade “latente”. Parem de procurar uma suposta verdade escondida dentro de nós para nos curar: sim, pois o único discurso de cura aqui é aquele que não prevê as existências trans como legítimas, de forma a concluir que a cisgeneridade seria natural. Parem de imputar uma neurose universal que não nos pertence.

Se você não é trans e é homossexual nós iremos lutar para que as vidas dos homossexuais cisgêneros importem. Ninguém quer forçar que pessoas sejam trans. Nós queremos apenas liberdade para sermos quem queremos ser. Nós não precisamos rifar certas identidades em detrimentos das outras. Não é uma competição na militância sobre quem pode existir em detrimento de outro. Há lugar para todos, há lugar para a multiplicidade onde os sujeitos podem expressar seus desejos e construções identitárias, e aliás, ninguém precisa ser só uma coisa de forma imutável.

25/06/2016

Hoje eu vi um texto de tão transmisógino que chega a ser engraçado. De uma página de “feminismo radical didático”. Diz lá que todas as mulheres trans lésbicas são seres fetichistas e repugnantes prestes a estuprar as mulheres. Mas não se trata de estupro como violência sexual: é colocado que a transição de mulheres trans representa de alguma forma a possibilidade de um estupro. Agora, explicar exatamente o porquê desta afirmação o texto não faz, ele só trabalha através de implícitos. E tais implícitos só funcionam porque parece muito óbvio que mulheres trans são seres bizarros e repugnantes. A pessoa diz que mulheres trans lésbicas se “apropriam” da cultura lésbica também. Vejamos então a irracionalidade por trás disso tudo.

A pessoa lá desse texto coloca que não se trata apenas uma questão de mulheres cis lésbicas, afinal, uma mulher cis que se engaja num relacionamento com uma mulher trans que não tenha feito a transição ainda também seria afetada. Quer dizer, a partir do momento em que uma mulher trans transiciona durante um relacionamento (antes dito como heterossexual, já que a mulher trans poderia ser lida como um homem cis) mulheres cis seriam afetadas por alguma espécie de perigo iminente.

Neste aspecto, todos os homens cis acabam tendo sua existência posta em “perigo”, já que todo homem é uma mulher trans em potencial, e portanto, uma estupradora em potencial. Eu sei gente, a lógica é estranha, mas temos que continuar.

Esse texto diz muito sobre transfobia e a cultura de estupro. É mais fácil dizer que mulheres trans são estupradoras em potencial do que dizer que homens cis são estupradores em potencial. Esse texto é estranho por causa disso: os homens só se tornam estupradores em potencial na medida em que podem “fetichizar” um relacionamento lésbico, ou seja, os homens se tornam estupradores em potencial a partir do momento em que podem ser mulheres trans em potencial.

A intenção desse texto não é sobre lutar contra a lesbofobia ou contra o estupro; é sobre pressupor que mulheres trans são seres repugnantes e portanto, impossibilitadas de se engajarem num relacionamento. Para tanto, o texto usa habilmente a retórica do feminismo radical. Estão de parabéns, mas felizmente as pessoas – incluindo as lésbicas – não irão comprar esses absurdos em nome de feminismo algum. Esse texto só faz sentido remotamente a partir do momento em que se naturaliza o estigma sobre mulheres trans.

Nós mulheres trans, sejam lésbicas, heterossexuais, bissexuais ou assexuais, não somos joguete do seu discurso transfóbico. Não somos fetiche de pessoas cis. Nós existimos para além do estigma que você quer impor a nós. Não somos seres bizarros e repugnantes – termos aliás que o próprio texto mobiliza para adjetivar as mulheres trans.

Fica a dica: dizer que tudo é cultura de estupro implica dizer também que a cultura de estupro é nada. Dizer que a existência de mulheres trans por si só e abstratamente “estupra” mulheres é não apenas irracional e ilógico, é fruto direto da transfobia. É também ignorar o que de fato é a cultura de estupro.

28/06/2016

Sempre que tem uma notícia sobre uma travesti ou transexual em portais de notícia, aparece comentários sistematicamente desse tipo: “não importa quantas cirurgias fizer, sempre vai ser homem”; “não importa o que faça, nunca vai poder mudar seus cromossomos”; e etc e etc, *insira ali qualquer aspecto biológico/morfológico que se associa a determinado gênero* para dai concluir que pessoas trans estarão eternamente marcadas pelo engodo, erro, falsificação.

Este é o senso comum acerca da transgeneridade, de que ela marcaria uma Falta ou Falha essencial em relação à verdade da cisgeneridade e não haveria *nada* o que uma pessoa poderia fazer contra isso. Esse senso comum não está presente apenas nos reacionários que comentam pela internet, está também presente espontaneamente no feminismo, no marxismo e nos demais movimentos de resistência que ainda não trabalharam criticamente o debate da transgeneridade.

Vemos por exemplo algumas pessoas que se reivindicam lutar pelo feminismo dizer que a afirmação de mulheres trans se reivindicarem enquanto mulheres se daria mediante um “erro teórico”, ou seja, afirmar que mulheres trans não poderiam ser mulheres supostamente se sustentaria por uma teoria pretensamente feminista, já que o enunciado de que “mulher trans é mulher” seria insustentável numa relação de referência com uma certa “realidade” mediada por esta teoria.

Acontece uma coisa: o movimento de pessoas trans e o transfeminismo coloca justamente que a afirmação de pertença ao gênero identificado das pessoas trans não está marcado por uma Falta de verdade em relação à cisgeneridade porque fazemos justamente à crítica ao regime de normas da cisgeneridade como o pretenso universal do gênero dos sujeitos. Pessoas trans não querem serem pessoas cis, nós não precisamos nos remeter a um sistema de validação cisgênero para podermos existir em nossas diferenças. Não precisamos viver à margem desse sistema de validação para podemos existir simbolicamente, porque justamente existimos a partir de nosso próprio referencial, ou seja, nós não nos constituirmos através da Falha e da Falsidade de um pretenso original verdadeiro; nós nos constituímos através da alteridade, e a alteridade pressupõe um embate/movimento entre estas duas “consciências” cis e trans que nos direciona a uma simetria de realidades.

Neste aspecto, afirmar-se como trans não é habitar uma mentira, porque as pessoas trans existem enquanto seus referentes próprios existenciais. Isso implica considerar: discutir nossas questões políticas, nossas especificidades, a legitimidade de nossas identidades, etc, não se marcam enquanto falta/falha/falsidade. Afirmar-se como mulher e homem enquanto trans, portanto, não é enunciar uma mentira, é enunciar uma verdade com suas próprias especificidades.

29/08/2016

Aconteceu um caso que ilustra muito bem sobre como não podemos colocar as questões de identidades e sexualidade como evidência. O caso é sobre um casal identificado como um homem e uma mulher se beijando na capa de um jornal anunciando sobre a parada gay – ou melhor, LGBT. Algumas pessoas reclamaram que seria um apagamento da homossexualidade, já que estaria representando um casal hétero. Contudo, vieram as pessoas bissexuais questionarem a evidência dessa acusação, já que não se pode presumir a sexualidade de um casal como hétero apenas por se tratar de pessoas de gênero diferentes, já que elas podem ser bissexuais.

Acho que esse caso nos mostra a importância de um olhar mais atento, que não se veja preso numa única forma de interpretar seja um texto, seja uma imagem. Acho que podemos concluir também que discutir a especificidade de determinada questão não implicaria no apagamento de outra. Lutar pela visibilidade bissexual não implica silenciar as identidades homossexuais. É importante a gente não cair em falsos antagonismos a partir do momento em que reconhecemos a importância de visibilizarmos a multiplicidade de questões que são igualmente legítimas.

Como movimento social, nós não temos que lutar para que as evidências continuem sendo evidências. Questionar o que se estabilizou e portanto apontar para interpretações outras possíveis sobre algo é fundamental para o nosso movimento enquanto crítica social.


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