Leia também:
- Retrospectiva de textos publicados – parte 1.
- Retrospectiva de textos publicados – parte 2.
- Retrospectiva de textos publicados – parte 3.
Textos publicados entre julho de 2016 a dezembro de 2016. Como de costume, nomeei os textos de acordo com as datas em que foram escritos e organizei em diferentes temas.
- Relações de alteridade cis/trans: 02/07; 05/07; 15/07; 02/08; 02/10; 18/10; 24/10.
- Identidades e “estereótipos de gênero”: 03/07; 11/07; 31/10.
- “Ideologia de gênero”: 06/07.
- Tentativas de proibição de uso de banheiros: 08/07.
- Noção de “privilégio”: 09/07.
- Noção equivocada de “liberalismo” no “feminismo radical”: 12/07.
- Entrevista sobre feminismo: 15/07’’.
- Resposta ao delegado Jose Antonio Taschetto Mota, que investigou o crime transfóbico de assassinato de Nickolle Rocha: 15/07’’’.
- Fluidez de gênero e infância: 16/07.
- “Cura gay” e transgeneridade: 31/07; 06/11; 13/11; 23/12.
- Prostituição e o equívoco da questão da “escolha”: 01/08.
- Transgeneridade e existência: 13/08; 20/12; 27/12; 29/12.
- Cisgeneridade e “realidade”: 14/08.
- Transfobia e culpabilização da vítima como indivíduo: 15/08.
- Nome social e instituições: 16/08.
- Homens que se vestem como mulher/ homens femininos e transfobia: 21/08; 05/10; 22/11.
- Materialidade, subjetividade e política: 23/08; 28/08; 11/11.
- Nudez/mostrar os seios em público: 29/08.
- Casos de transfobia: 07/09; 14/09; 05/11.
- Sobre a revogação do direito ao uso de espaços hospitalares de acordo com a identidade de gênero e exigência de “pareceres técnicos” de transexualidade: 07/10.
- Diferença entre Travesti/transexual: 19/10.
- Identidades LGBT (construção social ou inatismo?): 24/11.
- Nome social no currículo lattes: 05/12.
- Reprodução de opressão pelos próprios oprimidos: 28/12.
02/07/2016
É muito comum as pessoas dizerem que seria ruim utilizar o termo cisgênero já que nós deveríamos questionar as classificações, já que as classificações são binaristas, possuem uma lógica que deveríamos superar, que criar contornos não é algo legal politicamente e etc e etc… mas dai a mesmíssima pessoa vai lá e solta com a maior espontaneidade os termos “heterossexualidade compulsória” e “heterossexual”. Ora, falar em cisgeneridade desvelaria um suposto desejo de classificar inadequado mas falar em heterossexualidade, não? Vemos aí um exemplar caso de “dois pesos e duas medidas”… e isso é terrivelmente comum e espontâneo… na fala de pessoas cis que se recusam a se reconhecer suas diferenças constitutivas em relação a nós, pessoas trans.
Vejam bem: nós podemos falar em heterossexualidade sem sermos binaristas, na mesma medida, nós podemos falar em cisgeneridade sem sermos binaristas. Se entendemos que a sexualidade é fluída; se entendemos que discutir a heterossexualidade é discutir a alteridade que nos constitui; na mesma medida podemos entender que o gênero é fluido e que discutir a cisgeneridade é discutir a alteridade que nos constitui.
Não é sobre dizer que existam pessoas cis e trans como se fossem entidades separadas. É sobre permitir o reconhecimento do Outro em Si. Por isso a consciência de si é necessariamente fluida, pois ela se constitui através do movimento em direção ao Outro. Não é sobre querer meramente criar divisões. É sobre criar pontes de diálogo e questionar a naturalidade das normas e estabelecermos a partir daí uma relação mais saudável que fazemos com a diferença em relação ao hegemônico: tanto na sexualidade quanto no gênero.
Não é sobre pressupor que a cisgeneridade e a transgeneridade significariam coisas absolutamente distintas, já que não existe inconformidade nem conformidade em relação ao gênero de forma absoluta: as experiências de inconformidades em relação à norma que pessoas trans vivenciam dizem respeito às experiências de conformidade em relação a norma que pessoas cis vivenciam. Uma coisa está necessariamente presente na outra, isso se chama dialética: tanto pessoas trans quanto cis vivem a partir do desdobramento de uma mesma totalidade contraditória do gênero.
É só isso.
03/07/2016
Se você quer vestir vestido, usar maquiagem e brinco e ser homem, eu obviamente vou lutar para isso. Se você gosta de coisas consideradas femininas eu vou lutar para que você não seja constrangido por uma norma que impõe terapia com hormônios femininos. Eu sou transfeminista e luto para que as pessoas construam suas formas de estar no mundo quanto ao gênero sem sofrer nenhum tipo de constrangimento ou violência. Eu luto para que homens façam coisas femininas sem sofrerem constrangimento e luto para que mulheres façam e gostem de coisas/roupas consideradas masculinas. Eu enquanto transfeminista irei lutar para que pessoas cis não sejam constrangidas e violentadas por papéis de gênero. Eu sei inclusive que lutar por isso é algo que interessa intimamente às pessoas trans pois as pessoas trans são as primeiras interessadas com o fim deste tipo de violência.
Agora, não venha me dizer que eu não posso ser mulher trans. Não imponha a sua narrativa pessoal para o resto dos sujeitos, não universalize sua forma de estar no mundo. Não queire me corrigir em direção à cisgeneridade compulsória pois eu não vou aceitar este abuso. Eu não vou aceitar o abuso de pessoas que lutam para que pessoas trans não possam existir neste mundo e que dizem que isso se trata de uma “crítica radical” aos “estereótipos de gênero”. Não vou engolir retórica desonesta.
Não me venha dizer que não posso fazer uso de reposição hormonal, pois você acaba por colocar o ônus da negligência médica sobre os indivíduos que desejam essa forma de alteração corporal. Não me venha dizer que não posso fazer cirurgias de redesignação. O corpo é meu, e a decisão por realizar tal procedimento não decorre unilateralmente de “forças malévolas do capitalismo”. A decisão por realizar determinado procedimento é uma escolha existencial, ela não é fruto de algo que deu necessariamente “errado”. Pessoas trans não são pessoas tristes e equivocadas em essência. A tristeza decorre da naturalização das violências sob o égide da transfobia.
Se não é pra ser trans, não é a minha revolução. A minha existência não está à venda ou passível de ser rifada, seja em nome de “feminismo radical” ou qualquer outro movimento “revolucionário”.
03/07/2016
Se as pessoas trans estão “reproduzindo estereótipos de gênero” e você acha que as pessoas trans “não precisam” fazer isso, já que você quer que elas sejam “livres”, como vai se dar a sua análise da realidade social:
1) Você coloca o ônus da “reprodução dos estereótipos” sobre os indivíduos, ou seja, você culpabiliza uma consciência errada, uma escolha pessoal errada, uma subjetividade alienada que seriam provenientes das pessoas trans. Você diz que elas reproduzem estes estereótipos porque estão “fetichizando” o gênero, ou seja, aqui se trata de uma análise ao mesmo tempo liberal – porque centra-se no indivíduo como o problema – e disciplinadora/punitiva, já que coloca que certas formas de estar no mundo são necessariamente equivocadas – assim você advoga para formas de estar no mundo que seriam essencialmente melhores, se baseando unicamente num argumento que coloque a cisgeneridade como natural, neutro e destino de todos os seres humanos.
2) Você compreende a “reprodução dos estereótipos” como sintoma ou efeito de algo, e não a causa das opressões. A reprodução dos estereótipos por pessoas trans teria uma razão estrutural para acontecer, e não meramente decorrente de subjetividades alienadas. Você, antes de julgar e prescrever um modo de vida não-trans, tenta compreender a existência trans concretamente. Você compreende que existem razões objetivas que levam as pessoas trans a “reproduzirem estereótipos” que não se circunscrevem às subjetividades individuais. Você compreende que a luta contra a imposição de tais estereótipos não deve representar, portanto, ônus para os indivíduos e as formas que eles escolhem habitar o mundo.
A partir do momento em que vivemos num mundo em que se você for visto enquanto trans – ou simplesmente for visto a partir de uma inconformidade em relação à cisgeneridade – isso representar exclusão no mercado de trabalho, haverá imposição para passarmos como cis e “reproduzirmos estereótipos”. Se você luta contra os estereótipos de gênero mas não se atenta para a inclusão de pessoas trans na sociedade – na educação, no trabalho, na família, nas instituições e nas moradias – a sua luta, para as pessoas trans, é simplesmente vazia. Se a sua política de inclusão às pessoas trans for através da assunção de que elas devam ser cisgêneras, a sua inclusão é falsa e seu discurso é hipócrita.
Vazia porque não compreende objetivamente as circunstâncias que levam as pessoas a tentarem a se encaixar no modelo cisgênero de passabilidade (inteligibilidade) para, quem sabe, usufruírem de cidadania e direitos básicos. Se você não consegue compreender que a necessidade de ser incluído (ou buscar ser incluído) através da “reprodução dos estereótipos de gênero” como uma forma de se defender de tantos estigmas e exclusões provenientes da transfobia, sinto muito, você acaba por fazer um grande desserviço à causa das pessoas trans ao marcar as suas subjetividades e suas escolhas como erradas. O que está errado são as exclusões, não as múltiplas formas como as pessoas resistem a elas. Por isso é tão importante se atentar para a relação de causa e efeito e compreender o que se situa na esfera do estrutural e do individual. Se você não compreende isso, você não quer que pessoas trans sejam de fato livres, ao contrário, você quer que continuamos presas aos mesmos estigmas que geram todas essas violências e exclusões.
05/07/2016
Ouço muito falar que o termo cisgênero seria inadequado para descrever uma realidade já que a definição que fazemos dele, a saber, “uma pessoa que se identifica com o gênero designado ao nascer”, seria inadequada, já que nenhuma pessoa se identifica de forma absoluta com o gênero designado ao nascer. Mas ora, dizer que existe identificação com um gênero não implica dizer que existe uma identificação ABSOLUTA com ele. Se dizemos apenas que existe identificação (ou não) com o gênero designado ao nascer, há brecha para pensarmos como essa identificação se dá, ou seja, podemos sim pensar que essa identificação se dá de forma RELATIVA, e não absoluta. Portanto, as experiências de inconformidade ou conformidade em relação ao gênero não se dão através de experiências díspares, e podemos pensar a cisgeneridade como uma relativa conformidade das expectativas de gênero EM COMPARAÇÃO à inconformidade da transgeneridade.
É muito importante a gente compreender essa aparente sutileza a nível teórico. Se compreendemos que as identificações e contra-identificações são necessariamente relativas – podemos compreender dialeticamente o funcionamento das normas de gênero e seus “estereótipos”. Se dizemos que há identificação, ela é portanto desde sempre provisória – pois constitutivamente contraditória, já que o movimento que leva às conformidades em relação às normas de gênero também leva a sua negação, as inconformidades de gênero. E as inconformidades, por sua vez, também se dão através da reiteração transformada das conformidades. Uma teoria transfeminista do gênero é, portanto, necessariamente dialética.
Se a gente for pirar por trás de possíveis significações da hetero/homossexualidade, a gente poderia pensar sobre os pressupostos que guiam estes termos, a saber, a noção de que existam gêneros ou iguais ou diferentes entre eles e necessariamente binários. Ou seja, “homo” e “hétero” só significam através do binário auto-excludente “homem” e “mulher”; “masculino” e “feminino”.
No meu post anterior, eu mostro como sempre colocam em questão a evidência do prefixo “cis” em relação às conformidades em relação a norma: as pessoas facilmente objetam contra a evidência de “cis” poder significar uma conformidade ABSOLUTA em relação às expectativas de gênero. Mas será que conseguimos pensar o mesmo sobre o prefixo “hétero”? A saber: será que conseguimos questionar a lógica subjacente à heterossexualidade, de que existam, de forma ABSOLUTAMENTE binária homens e mulheres? Ou seja, podemos questionar a gramática binária que subjaz a evidência das diferenças entre homens e mulheres enquanto entidades absolutamente díspares?
Pensando nestes questionamentos dessas evidências, não há como não citar Gayle Rubin. Rubin inverte o discurso do essencialismo biológico: entre homens e mulheres há mais semelhanças do que diferenças, de forma com que devemos explicar como surgiu a evidência de que homens e mulheres são diferentes, e não o contrário. Neste movimento genial, a autora coloca que a própria diferença entre homens e mulheres como passível de ser explicada, pois ela não é auto evidente: a diferença teve que ser produzida como evidência através de alguma forma. Esta “forma” não é resultado do mero reflexo da natureza ou biologia, ela é condicionada através da linguagem (discurso) de uma determinada sociedade em determinado período histórico.
É certo que Rubin ainda trabalha de certa forma com a noção de que sexo é um “material bruto” a partir do qual os discursos sociais definem o gênero. Outras autoras posteriormente, como Judith Butler, Monique Wittig e Donna Haraway vão trabalhar a dicotomia sexo/gênero que foi aberta inicialmente por Rubin através de alguns deslocamentos mais ou menos sutis nas suas teorias.
06/07/2016
Eu tenho uma hipótese do porquê houve tamanho retrocesso das questões sobre gênero nas escolas, ou seja, porque o conservadorismo conseguiu avançar tanto sob o lema do combate à “ideologia de gênero”. Minha hipótese é acerca de um fator que nos ajudaria explicar como os conservadores expandiram suas garras sob as diretrizes de educação e conseguiram excluir e as vezes até mesmo proibir a discussão e até mesmo a menção da palavra gênero.
Os conservadores avançaram a partir do ponto cego da militância de direitos humanos. Que ponto cego? Acredito que ainda hoje a questão das pessoas trans é um ponto cego, pois as pessoas trans ainda carecem da possibilidade de representação. É preciso representação simbólica, acessar o nível de sujeito humano para termos reconhecidos nossos direitos. No entanto, discutir integralmente a questão trans ainda parece incômodo e secundário. Isso significa que a questão da “verdade dos sexos” permaneceu intocada, enquanto outras questões conseguiram relativamente mais visibilidade – e digo visibilidade na forma como certas questões como sexualidade, raça e “sexo” não se tornam “pontos cegos” do ponto de vista epistemológico. Pessoas trans ainda são tidas como abjetas, já que vivem a partir de um engodo insuportável. Se somos insuportáveis, nem ao menos o discurso de direitos humanos pauta integralmente nossa demanda por reconhecimento, pois a questão da verdade dos sexos permanece intocada epistemologicamente: existem homens “homens” e mulheres “mulheres” e o resto é o resto.
Ninguém diz que a heterossexualidade é produto da ideologia de gênero. Pouca gente diz que discutir a questão de mulheres cis, a “violência contra a mulher”, é necessariamente ideologia de gênero. Ideologia de gênero é a “mentira” sobre o gênero, ou seja, o estigma que recai sobre pessoas trans. E o estigma que recai sobre pessoas trans é tamanho que os conservadores conseguiram expandir suas agendas inclusive para a questão dos homossexuais cis e das mulheres cis. Por isso a questão trans é uma questão de todos. Porque se temos um ponto cego em nossa militância, é através dele que os conservadores vão se utilizar habilmente para expandir seus retrocessos. Se a questão trans é intocada, o avanço conservador irá dizer que a discussão sobre heterossexualidade compulsória e feminicídio é ideologia de gênero também.
O debate sobre a “verdade dos sexos”, ou seja, sobre o estigma que significa viver sob a “mentira” e a “enganação” dos sexos recai primordialmente sobre pessoas trans mas também gera estilhaços para as pessoas cis. Por isso já é hora da gente falar que não apenas a heterossexualidade é compulsória, mas também a cisgeneridade. Se não compreendemos que a cisgeneridade é construída como uma norma – ao invés de uma verdade inscrita na natureza – vamos sofrer sucessivas derrotas no âmbito político.
Os sujeitos que habitam o que se considera a mentira do gênero são os sujeitos trans. Suas reivindicações por reconhecimento só se dão a partir da crítica de normas que estabelecem que suas existências são falsas, ou seja, da cisgeridade como norma.
08/07/2016
Texto sobre o projeto de lei 5774/2016 que visa proibir o uso do banheiro por pessoas trans
Isso é uma porta aberta pro fascismo. Primeiro que desumaniza e retira totalmente o direito de ir e vir das pessoas trans e fere contra o princípio de presunção de inocência no exercício desse direito.
Segundo, patologiza e condiciona a cidadania das pessoas trans na realização de uma cirurgia, que deveria ser de escolha de foro intimo de uma pessoa, não requisito para se tornar um cidadão de direito. Se a única forma legítima de ser trans frente ao estado é você ter feito a cirurgia de redesignação e ter conseguido ganhar o processo de retificação de gênero, eu me pergunto: o estado dá conta de garantir este “mínimo”, ou seja, o estado consegue garantir estes mesmos requisitos que ele exige para que pessoas trans sejam cidadãs? Sabemos que não. O estado dá conta de realizar cirurgias de redesignação e existe lei que garanta que todas as pessoas redesignadas ganhem a ação de retificação de gênero? Não. Então, mesmo sob os moldes desumanos da cidadania cirúrgica, a cidadania é negada, duplamente, pois o estado não dá conta nem da cidadania precária.
Terceiro, é fascista inclusive com pessoas cis: como irão provar que uma pessoa é cis e não trans para que ela possa usar o banheiro? Revista vexatória, olhometro baseado em estereótipos de gênero? Enfim… diante de tudo isso, eu me espanto com a espontaneidade que as pessoas chegam a defender medidas fascistas como essa.
Vale a pena a leitura do texto que eu já fiz, mostrando como a proibição do uso do banheiro por pessoas trans é um atentado ao bem comum:
Veja também o comentário da Virgínia Guitzel, no facebook.
09/07/2016
Ouço muito falar acerca de uma discussão que diz que certos privilégios não seriam de fato privilégios. As pessoas argumentam que o fato de não sofrer determinada opressão não implicaria um privilégio, mas uma “condição mínima” que todos deveriam ter.
Vejam só aí tem duas facetas que estão intimamente ligadas em relação ao privilégio: o privilégio “positivo” em que há uma relação mais explícita de deter o privilégio do usufruto de algo em detrimento de outro grupo e o privilégio “negativo” que decorre mais explicitamente do fato de um grupo não sofrer com determinada violência ou com a falta da possibilidade do usufruto de determinado direito.
Vejam, ao contrário, que o “negativo” quanto o “positivo” estão intimamente ligados, então a meu ver não dá pra dizer que o privilégio positivo seria o único tipo de privilégio “verdadeiro” enquanto que o negativo seria um tipo de falso privilégio. Privilégio não reside apenas em sua faceta positiva: se algo é dado exclusivamente para um grupo em detrimento de outro o “negativo” se manifesta no grupo oprimido; da mesma forma, se algum grupo não detém a possibilidade do usufruto de um direito (que sim, deveria ser universal) é porque existe “positividade” em relação ao grupo ou grupos que detêm a possibilidade o usufruto deste direito.
Então a definição de privilégio é necessariamente RELACIONAL: um grupo detém certo direito em detrimento de outro (relação positivo-negativo) AO MESMO TEMPO em que um grupo é alijado deste direito em detrimento de outro (relação negativo-positivo). Privilégio não é sobre simplesmente “ter ou não ter” é “ter ou não ter EM RELAÇÃO a algo”.
Por mais que o que certo grupo ou grupos detenham algo da esfera que se trata de uma CONDIÇÃO MÍNIMA de sobrevivência – ou seja, ser respeitado em sua individualidade, por exemplo, não sofrer violência, etc – que entendemos que se trate de um direito humano universal, o fato de determinado grupo sistematicamente ser alijado desta condição mínima se configura sim a partir de uma RELAÇÃO de privilégio.
11/07/2016
Quando nos interpelam com questões do tipo “porque você é mulher trans?”, ou ainda “afinal, o que é/faz uma mulher” (sendo direcionada às mulheres trans ao à discussão sobre mulheres trans) se tratam de perguntas potencialmente capciosas. Irei portanto subverter na minha resposta os pressupostos equívocos dessa pergunta, mas antes vou fazer algumas digressões.
Essas perguntas não costumam ser inocentes, ainda mais em contextos que procuram excluir as possibilidades legítimas de identificações pelos sujeitos trans, em especial, por mulheres trans (e nos culpabilizar por um Mal ou pelas violências que estamos socialmente expostas). A pergunta não é inocente porque ela está sustentando diversos não ditos ou quase ditos do tipo “você só é mulher trans em decorrência de x”, sendo “x” algo profundamente e ontologicamente diferente da condição da mulher cis. Acontece que não se pressupõe uma diferença potencialmente indeterminada aberta ao novo; é uma diferença que imputa necessariamente um estigma com base no fato de que mulheres trans não serem consideradas “mulheres de verdade”: mulheres trans seriam mulheres porque estariam “reforçando estereótipos de gênero”, porque estariam “fetichizando” a condição de subalternidade da mulher cis… e mais diversas lorotas que eu sempre tenho a preocupação de desconstruir. Quer dizer, se o fetiche ou estereótipos resumem as nossas formas de estar no mundo e nossa subjetividade, pra que então essas criaturas abjetas estão lutando para reconhecimento de seus direitos, não é mesmo?
Respondendo então de forma a subverter todos estes estigmas transfóbicos, eu digo: sou mulher pois disseram que eu não era e, nesta medida, pelo fato de estar exposta aos estigmas que decorrem desta negação. Sou mulher porque a cisgeneridade compulsória não é um destino óbvio de todos os sujeitos. Sou mulher simplesmente porque disseram que eu não poderia e porque eu habito o que consideram uma mentira. E mesmo vivendo a partir do que é considerado uma falsidade, afirmo a especificidade e a potência de existir para além da cisnormatividade. Para além das lógicas da Falta de verdade: nego uma negação e por isso faço uma afirmação.
O transfeminismo, portanto, é a ideia radical que mulheres trans não são culpadas pelas violências que sofrem em decorrência de habitarem a zona do que é considerado uma mentira, um engodo do gênero.
12/07/2016
Vamos falar sobre liberalismo aparecendo de forma inconsciente no discurso da militância de algumas pessoas que se dizem radicais. Hoje eu vi um print de uma pessoa falando que defender a bissexualidade de mulheres seria anti feminista, porque seria o mesmo que defender a relação entre homens e mulheres e isso seria, por algum motivo, essencialmente ruim, já que toda e qualquer relação entre um homem e mulher teria que ser opressora.
Sim, é meio difícil de fazer alguns saltos de irracionalidade que esse discurso necessita, mas vejamos como um posicionamento que é, na verdade, profundamente liberal, sai pintado como “radical”. Dizer que o relacionamento de mulheres com homens causa a opressão é inverter a causa pela consequência. Não, nem toda relação entre homens e mulheres tem que ser e serão opressoras. O feminismo está justamente pra isso: construir relações não opressoras entre homens e mulheres, a partir do momento em que entendemos que a opressão não é natural.
O que faz muitas relações entre homens e mulheres serem opressoras não reside simplesmente no fato de mulheres e homens se relacionarem entre si; o que faz destas relações potencialmente opressoras é a estrutura machista que estabelece uma relação de poder em que as mulheres estão postas em posições de vulnerabilidade tanto em nível econômico como social e cultural.
Mas daí se parece, apenas na aparência, uma posição muito radical dizer que mulheres não devem se relacionar com homens porque isso seria a causa das opressões. Mas não é, é apenas o liberalismo atingindo um nível tão ramificado na trama do poder que a própria relação individual entre sujeitos é posta como sendo a origem das opressões. Diria também que é a manifestação do poder pastoral (Foucault que estuda bastante o funcionamento desse tipo de poder), em que o poder se pretende controlar toda e qualquer atividade individual de um sujeito tendo em vista a sua libertação.
12/07/2016
Olha, as vezes a gente pode sentir até piedade do ignorante. Imagina o conflito interno de uma radfem que namora um homem mas diz que toda relação entre homem e mulher é opressora. Porque assim de duas uma: ou ela não leva a sério o próprio discurso e então estabelece uma relação completamente hipócrita ou cínica com o que diz e a sua prática; ou então ela vive a partir de um paradoxo tão intenso entre o que diz e pratica que deve sofrer uma dissociação subjetiva de forma excruciante. Vocês acham que acontece mais a primeira ou a segunda coisa?
Comentário de Raíssa Éris Grimm
bom, aquele lance…
o RadFem que tem se consolidado nesses espaços vem estabelecendo uma relação entre teoria e prática que herda muito do cristianismo – não no sentido das verdades que defende, mas no tipo de relação ascética entre sujeito e “verdade” que estabelece.
Aquele lance de ser uma teoria que “não está sujeita a interpretações”, uma pretensão salvadora e redentora (de se colocar como a “única teoria verdadeiramente revolucionária”), e um horizonte utópico de revolução sempre a posteriori, sempre “amanhã”, que nunca encontra uma efetivação prática de ação direta sobre a sociedade em que vivemos agora.
O que eu vejo nisso que você traz é um pouco herança daquele discurso do “pecado cristão” – em que a pessoa que se reconhece pecadora se coloca num lugar diferenciado, e supostamente “superior” em relação àquela que não se reconhece enquanto tal.
Tipo a pessoa que se vê numa prática reconhecida como “errada” por aquela teoria, tentando se redimir por mostrar que reconhece e se arrepende desse erro, adotando discursos e práticas extremamente violentos contra suas semelhantes – porque quem sabe, dessa forma, a pessoa acredita que vai mudar, e que vai expiar por seus erros.
Uns tempos atrás, tava colando pelos espaços uma mina trans ou travesti, com textos extremamente transfóbicos (principalmente: translesbofóbicos), sendo bastante citada e aplaudida por RadFems. Eu me questionei por um tempo o que fazia aquela mana adotar esse discurso, violento com ela mesma, mas então eu percebi que tinha a ver com isso: reconhecer o próprio “desvio” como uma forma de diferenciar-se das “outras”, daquelas que “se deixam levar pelo engano”.
Eu diria que, em todos esses casos – em maior ou menor grau: a pessoa sofre com isso. Porque por mais que você tente se dissociar, você não consegue, aquele discurso vai continuar o tempo inteiro te culpabilizando e te punindo pelo “erro”.
Cada dia mais, eu percebo que um dos problemas mais complicados no ativismo (e não só no Rad), tem sido as heranças que as pessoas carregam do cristianismo – não necessariamente os discursos cristãos, não necessariamente aquilo que os cristãos defendem, mas uma herança da Ética cristã, uma herança cristã do tipo de relação entre sujeito e verdade…
e que, possivelmente, o que mais esteja em jogo hoje em dia não é disputarmos essa ética (qual teoria é mais verdadeira ou salvadora), mas a possibilidade de afirmarmos outras éticas.
15/07/2016
Tem gente falando que a tal candidata que foi impugnada do PSOL teria sofrido perseguição em virtude de discordar do PL Gabriela Leite. Bom, antes de entrar no mérito dessa questão, vamos nos ater a algumas falas dessa pessoa que ela fez em relação a travestis e mulheres trans.
A referida disse que “transexualidade é mera performance”. Também compartilhou um texto em que dizia que a reivindicação de direitos das mulheres trans e travestis não passava de uma forma de fetiche e de uma luta por um mero rótulo. Ela também fez questão de desrespeitar o nome e gênero da Daniela Andrade.
Agora vamos analisar melhor essas falas. Será que elas condizem com um partido como PSOL, que apresenta leis de identidade de gênero, como a lei João Nery? Dizer que a luta de mulheres trans e travestis é fetiche, “mera” performance ou rótulo é uma evidente maneira de desqualificar a luta de direitos dessa população. Para tanto, se utiliza de estratégias discursivas para reafirmar o estigma que recai sobre nós: de que somos fetichistas, de que nossas pautas são “mera” alguma coisa qualquer. A partir do momento em que expressões como essas são usadas pra desqualificar nossa luta, é a própria condição de transgeneridade de travestis e transexuais que é posta em dano.
O que será que significa dizer que transexualidade é “mera” performance? Vejam bem a partícula “mera”. Seria a cisgeneridade a verdade do sujeito e a transgeneridade uma “mera” degeneração performativa da ontologia da cisgeneridade? Qual a necessidade de dizer “mera”, em contraposição ao quê ela se opõe? Transgeneridade é mera performance e cisgeneridade seria a condição da integralidade de um sujeito, já que não seria “mera performance”?
Lutar para que nossas vidas importem e não devam ser exterminadas acaba sendo visto como uma mera luta “fetichista” por um “rótulo”. Tal visão é claramente uma forma de expressão de dano ao reconhecimento coletivo de pessoas trans.
Agora cabe ao PSOL discutir se discurso transfóbico pode ser veiculado por pessoas que iriam representar o partido.
15/07/2016’’
Divulgando aqui umas respostas que dei para uma entrevista:
Qual o problema social do Brasil atual que mais preocupa você hoje?
É difícil dizer que algum problema social deveria preocupar “mais” do que outro. Se dizemos que existe um problema social, temos que estar de toda forma preocupados. No que toca especificamente minhas vivências enquanto mulher transgênera, me preocupo especialmente com a transfobia e a invisibilização social de pessoas trans em nosso país. O Brasil é o país em que mais se mata travestis e transexuais no mundo, a expectativa de vida deste grupo é muito abaixo do resto da população e o mercado de trabalho formal não oferece oportunidades. Fico especialmente preocupada pois não me parece que todas essas questões estão sendo postas na ordem da “discussão dos problemas sociais” como deveriam, de acordo com suas especificidades e gravidades. Não vejo também políticas públicas em direção a resolução desses problemas, salvo algumas iniciativas localizadas e embrionárias, como o programa transcidadania na cidade de São Paulo.
Para você, qual deveria ser a principal pauta do feminismo no Brasil hoje?
Acho que a principal pauta deveria ser a multiplicidade de pautas no feminismo. Nesse sentido, não tem que haver uma hierarquia entre diversas pautas (igualmente legítimas). Não acho que exista hierarquia de opressão, por isso não acho que deva existir hierarquias de pautas. Acho que todos os grupos que dialogam com o feminismo e tem suas especificidades de pautas devem ser fortalecidos. Com isso não estou dizendo que temos que individualmente assumir todas as pautas possíveis e imaginárias. Isso seria o mesmo que se sobrecarregar e se trataria de uma falsa representação. Acredito que os próprios espaços em que as pautas vão sendo formuladas e reivindicadas são múltiplos, o que eles precisam é ter visibilidade e legitimidade para fazerem efeitos na sociedade. Neste sentido, cada espaço vai ter sua “pauta principal”, digamos assim, e os espaços, por sua vez, vão se articular rizomaticamente com outros espaços igualmente legítimos de representação. Nesta articulação rizomática, as diferentes vozes feministas podem se potencializar, cada qual com sua elaboração específica de pauta e reivindicação.
Para você, o que significa ser feminista?
Significa questionar a ordem estabelecida para as mulheres em nossa sociedade. Com isso, questionamos a violência com que a sociedade expõe as mulheres, assim como às próprias noções comuns que temos acerca das mulheres. Neste processo, novas formas de ser mulher podem ser construídas, para além de normas pré estabelecidas. Isso se passa em diversas esferas possíveis de nossas vidas: as escolhas que fazemos de nossas vidas pessoais, profissionais, de sexualidade, até aparência estética, etc. É fundamental neste aspecto a crítica da culpabilização da vítima e o questionamento de estigmas, tão presentes em casos de violência de gênero. Feminismo, portanto, é política, e também política no sentido forte pois politiza o que antes era considerado como questão intocável, por ser tida como “privada”. Ser feminista para mim também é construir conhecimento feminista, na relação entre teoria e prática. Estabelecer bons encontros entre as mulheres é fundamental para que elas se fortaleçam politicamente e consigam elaborar suas pautas e lutar por direitos sociais.
15/07/2016’’’
Resposta ao delegado Jose Antonio Taschetto Mota, que investigou o crime transfóbico de assassinato de Nickolle Rocha, de 19 anos, na cidade de Cachoira do Sul/RS; que se referia equivocadamente à vítima com pronomes masculinos e desqualificando o uso do nome social através de expressões como “a forma como gostava de ser chamado” e se sentiu ressentido por ser chamado de “burro” pelo deputado Jean Wyllys em virtude da sua infeliz afirmação de que o assassinato de Nickolle não seria caso de “homofobia” pois os “envolvidos estavam numa relação homossexual”.
Senhor delegado, primeiramente não é “como gostava de ser chamado”. É o seu nome. Nome social de pessoas trans é o nome que as representam. Nome social é nome verdadeiro. Vá se educar e se informar melhor sobre isso. Respeite o gênero de Nickolle, pois caso o senhor também desconheça, o desrespeito ao gênero de pessoas trans está na base das violências transfóbicas que matam pessoas trans neste país.
Caso o senhor não saiba, o Brasil é o país em que mais se mata pessoas transexuais e travestis no mundo. Em grande parte dessas mortes, o que ocorre é a violência de toda uma sociedade que expulsa e nega direitos fundamentais a esta população. O senhor dizer que não se trataria de “homofobia” em virtude dos agressores se relacionarem sexualmente com a vítima só desvela a sua ignorância da realidade social que estamos inseridos. Ao contrário, o fato do crime acontecer numa dita “relação passional” apenas prova que se trata de uma violência nitidamente transfóbica. O movimento feminista tem questionado o uso desta designação “crime passional” para se referir às violências contra as mulheres pois se trata de uma forma de encobrimento das relações abusivas que decorrem das estruturas hierárquicas de poder que envolvem as relações de gênero. Com pessoas trans acontece o mesmo: não há crime de ódio “apesar” do envolvimento entre vítima e agressor, mas ao contrário, “por causa de”.
Por isso, antes de se sentir ressentido com a alcunha de “burro”, se informe melhor acerca da realidade de TRANSFEMINICÍDIO do nosso país. Se atente para as definições corretas de homofobia e transfobia antes de dizer que supostamente foi vítima de bullying.
Eu configuraria como bullying virtual justamente a forma desrespeitosa e ignorante como você tratou o caso de assassinato de Nickolle, a tratando equivocadamente no masculino. As pessoas travestis e transexuais, senhor delegado, precisam começar a serem respeitadas neste país, e acho que o senhor delegado deveria começar a dar o exemplo: assuma a crítica de forma propositiva ao invés de se sentir (falsamente) ressentido.
16/07/2016
Dizer que uma pessoa só pode ter uma identidade de gênero na fase adulta é profundamente cruel e transfóbico. Vemos muita gente supostamente bem intencionada dizendo que não seria adequado permitir que crianças trans sejam trans, ou melhor, que não seria adequado falar em criança trans pois isso iria criar expectativas normativas de enquadre em estereótipos. A ideia seria permitir com que crianças sejam livres, e pra isso seria necessário impedir de dizer que elas são (ou possam ser) trans, já que ser trans seria uma forma de prisão. Será mesmo? E se a criança escolher ser trans, temos que libertar a criança a força de sua prisão? E pra início de conversa: porque tomam a transgeneridade como uma prisão para crianças? Temos que questionar todos esses pressupostos, pois eles só se sustentam através de uma noção extremamente equivocada sobre a transgeneridade.
Sim, eu acho muito importante que crianças e todas as pessoas se vejam livres em experimentar suas identidades de gênero para além de expectativas imutáveis. É importante lutar para que as pessoas possam habitar a fluidez de gênero, e que elas não sofram por habitar o gênero fluido. Acontece que falar que crianças podem sim ser trans e que elas possuem identidade de gênero não contradiz esse princípio. Permitir a fluidez também enseja permitir a relativa estabilidade. Fluidez e estabilidade são ambos aspectos relativos, e são experienciados pelos sujeitos de formas múltiplas. A identidade de gênero de uma pessoas trans não precisa ser imutável a partir de estereótipos de gênero pré-estabelecidos.
Ora isso é profundamente equívoco. Você só quer “preservar” as crianças de serem trans a partir do momento em que você tem noções negativas sobre o ser trans. A partir do momento em que você tem noções de ser trans como algo “fixo” e “estereotipado”, pressupondo que ser trans pode ser danoso. Ora, ser trans não implica uma estabilidade absoluta de uma identidade! O que causa dano e sofrimento psíquico é a transfobia, não o fato de sermos trans!
Por isso sim, é importante a gente falar em criança cis e criança trans. Não pra dizer que elas tem destinos imutáveis e fixos. Mas pra questionar a espontaneidade na forma como a identidade de gênero das pessoas – incluindo de crianças – é vista sempre como cisgênera.
31/07/2016
Vi uma notícia que o Tribunal Regional Federal manteve a proibição das ditas curas gays. O argumento usado contra o recurso indeferido pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, que tentava liberar a tal cura, se baseou no fato de que a homossexualidade não consta no CID, classificação de doenças, e que portanto, não poderia configurar condição patológica passível de cura.
Gente, imagina se o povo que luta pela cura gay soubesse que as identidades trans são patologizadas? Ou então… pior, mesmo se soubessem pouco iriam se lixar. Vejam bem, acompanhem o raciocínio… se o argumento principal que foi usado contra a cura gay se baseia no fato de que a homossexualidade não é uma patologia, então nós que somos contra a cura gay deveríamos temer o fato de que as identidades trans são patologizadas, já que o discurso pró cura gay poderia se utilizar deste subterfúgio a seu favor. Mas o mais estranho de tudo isso é justamente que… nada disso acontece! Nunca vi uma alma viva que fosse defender a cura gay argumentando que as identidades trans são patologizadas.
Eis a ironia da vida… pastores e fundamentalistas querem curar gays cisgêneros mas talvez a transgeneridade esteja tão decaída que ou não é nem lembrada nas polêmicas públicas ou nem suscita interesse para sua eventual cura. Talvez com a transgeneridade o discurso conservador seja na prática mais incisivo e nos reste o extermínio nu e cru sem eufemismos de “cura”. Bom, aqui são minhas conjecturas… mas de qualquer forma, no mínimo duas coisas são sintomáticas nisso tudo:
1) O quanto é bizarro questões como “cura gay” serem judicializadas nos mais altos tribunais do país (quero dizer, acho válido apontar para o quanto não deveria soar óbvio o fato de terem que judicializar questões de subjetividade e sexualidade, isso a despeito mesmo do avanço que significa a proibição da cura gay) e,
2) O fato tido como tão irrelevante neste debate, seja para o discurso anti ou pró cura gay, de que as transgeneridades ainda continuam sendo patologizadas (quer dizer, isso indica que no mínimo pessoas trans são vistas como seres absolutamente irrelevantes nestes debates públicos sobre psicologia e estes “tratamentos duvidosos”).
01/08/2017
Sempre quando deparamos com discursos que colocam o “problema” da prostituição como algo a ser “abolido” da sociedade, se tece, direta ou indiretamente, considerações subjetivas sobre as prostitutas. Essas considerações subjetivas dizem respeito ao fato de que, a partir do momento em que a prostituição não pode ser compreendida como uma “escolha”, isso implica necessariamente que: 1) ninguém em sua “sã consciência” “escolheria” ser prostituta, logo, se existem prostitutas é porque não haveria nenhuma outra escolha de sobrevivência para a pessoa; 2) a partir do momento em que entendemos que a realidade não comporta bem esta descrição de que pessoas tão somente estão na prostituição por não terem nenhuma outra oportunidade de trabalho, já que não existe exatamente condição absoluta de falta de escolhas (ainda que elas sejam bastante limitadas pela exploração e precarização da existência) se tecem então considerações acerca da subjetividade da pessoa/mulher que se prostitui.
Percebam que necessariamente, portanto, o discurso que visa “acabar” com a prostituição leva consigo necessariamente uma teoria subjacente dos “motivos” subjetivos que levam uma pessoa a se prostituir, mesmo que se afirme o contrário. Quero dizer: ao pressupor que a prostituição só é exercida por pessoas que não tem absolutamente nenhuma capacidade de escolher ou que não tem absoluta capacidade de discernimento, se cria necessariamente verdades sobre os sujeitos que se prostituem: ora porque são necessariamente vítimas da absoluta falta de oportunidades, ora porque são tidas como alienadas. Uma coisa leva a outra: ao se imaginar que as pessoas só se prostituem porque não tem escolhas, fazemos considerações morais sobre as escolhas que elas efetivamente fizeram.
O nosso ativismo tem que se desvencilhar de toda essa rede de pressuposições sobre os sujeitos e suas condições de escolha e o consequente julgamento moral. É preciso parar de considerar a existência de um sujeito intencional “sensato” que necessariamente não escolheria se prostituir. Partir de um sujeito de intenção universal – que estabeleceria necessariamente que escolher se prostituir seria “ilógico” – é algo em si mesmo profundamente danoso, estigmatizante para com vidas diferentes do padrão hegemônico, putafóbico, fruto de uma moral hipócrita e que se liga fortemente com a transfobia.
Porque com a transfobia? Porque a constituição da subjetividade trans não entra na lógica de um sujeito intencional da hegemonia de nossa sociedade. Não há “lógica” para que pessoas trans sejam trans assim como não haveria “lógica” ser prostituta. Por isso nossa militância tem que ir às raízes – de fato – e questionar que tal “lógica” mascara na verdade inúmeras violências. Tal “lógica” pressupõe a não existência de pessoas trans E prostitutas – e vale lembrar que ser travesti é visto como sinônimo de ser prostituta, não por acaso. Essa lógica é violenta e ir às raízes do combate à opressão significa questionar a evidência de um mundo em que ser trans e prostituta seja algo tido como necessariamente indesejado do ponto de vista “lógico”. Esta lógica esconde a irracionalidade da opressão, mesmo que superficialmente se diga querer lutar contra a opressão.
Não ser lógico “escolher” ser trans ou prostituta não se baseia, de fato, na mera lógica, na mera constatação de uma suposta evidência. Há algo além da mera evidência que sustenta que essas vidas sejam tidas como ilógicas. A nossa militância tem que apontar isso e afirmar a possibilidade da construção vidas diferentes e que elas possam habitar o mundo sem sofrerem violência ou sem serem culpabilizadas pelas violências que estão expostas.
02/08/2016
Subversivo não é ser mártir. Se queremos revolucionar o sistema, o ônus da transformação social que queremos não deve recair em indivíduos. Porque eu falo isso? Porque o rolê que insiste supostamente denunciar a transgeneridade como “reforçadora dos estereótipos” de gênero só foi possível porque ele pressupôs, pela negação, de que a transgeneridade seria um espaço da pura contestação, da liberdade absoluta, da subversão completa de todas as normas.
Só se vê uma coisa a partir de sua negação e pra negar, você pressupõe implicitamente a existência desse algo. Por isso nossa militância tem que sair dessa teia de pressuposições – ou seja – dessa teia discursiva que nega para afirmar e afirma para negar: nega que a transgeneridade é revolucionária pra dizer que ela é conservadora; afirma que a transgeneridade é reiteração de regras pra negar que ela é tida como interdito social.
Temos que sair dessas oposições. Nem contestação absoluta nem submissão absoluta. Ser trans não é carregar discursivamente a culpa e a libertação do gênero. Somos sujeitos de carne e osso, não habitamos esse lugar exótico de extremismos discursivos. Não há, portanto, subversão sem regra nem regra sem subversão. A resistência e a luta por direitos se baseia e se realiza num outro lugar, fora de discursos culpabilizantes, individualizantes, que implicitamente colocam a transgeneridade num lugar ideal para poder difama-la. Só há decadência se se pressupõe a aspiração transcendente por um ideal.
Acontece que a luta por um mundo melhor não precisa eleger um ideal transcendente que negaria a decadência. Precisamos tirar o cristianismo do feminismo, de nossa militância.
13/08/2016
Acho muito estranho pessoas que falam que mulheres trans se assumem mulheres “para fazerem algo”, com a “intenção” de x. Gente… pessoas são trans e se assumem como trans não com a intenção de fazerem algo que não seja simplesmente serem o que são. A única intenção subjacente que leva a ela ser trans é justamente o fato de sermos o que somos e lutarmos para tanto. Pois é, nós enquanto mulheres trans não nos assumimos como tal para “empoderar mulher” – desde que sejamos a nós mesmas como um coletivo que busca a luta por direitos, vale lembrar – nem pra dizer que “podemos renunciar a privilégios”. Isso é uma distorção absurda do que somos e podemos ser. Nós enquanto pessoas não somos algo em virtude de uma intenção ou objetivos externos. Não somos algo em virtude de outra coisa que não seja desde sempre respeito a nós. Somos simplesmente como somos em função de sermos o que somos. Ponto. Nossas vidas, nossas formas de existências, nossos modos de vida não precisam de justificativas externas, de objetivos, de explicações que não se deem a partir de nossos próprios referenciais.
E nós enquanto transfeministas, enquanto pessoas que lutam pelo direito de pessoas trans estamos justamente questionando as violências que se impõem sobre pessoas que são trans. Não é sobre “provar” alguma coisa. Não é pra “provar que somos mulheres” ou “provar” que renunciamos a privilégios masculinos (oi?). Parem de colocar nossas vidas a supostos destinos, finalidades externas e intenções que não nos pertençam. O único motivo que leva uma pessoa a ser trans é ela ser trans, e o fato de ser trans não deveria justificar nenhum tipo de exclusão e violência. É demais afirmar isso que deveria ser óbvio?
14/08/2016
Pessoas cis adoram dizer que pessoas trans sofrem de um transtorno acerca de uma “distorção do real”, nos comparando frequentemente com o sujeito típico do delírio que “acredita ser napoleão”. Desta forma, uma mulher trans “acreditar” que ela seja mulher se dá através de uma falsificação da realidade, ou seja, a identidade trans se baseia numa fantasia que distorce o real, já que há uma disjunção entre “crença da identidade” e “real” que incidiria na própria produção da verdade, enquanto que a cisgeneridade seria a própria revelação da verdade do sexo, ou seja, um homem ou mulher cis “acreditar” que sejam homens e mulheres respectivamente decorre exclusivamente do fato de se tratar de uma adequação entre uma “crença” e a “realidade”.
Acontece vejam só, que a cisgeneridade – como forma dos sujeitos se reconhecerem pertencentes a uma dada “realidade” – não pode igualmente se sustentar numa suposta evidência de verdade. A crença de que a verdade dos sexos só possa ser cis é tão fantasiosa como as formas de identificação pelas pessoas trans. A cisgeneridade, por não ser natural, ou seja, por ser uma forma social e histórica dos sujeitos produzirem uma verdade, uma forma a garantir a continuidade entre “crença” e “realidade”; necessita que seja explicada e compreendida para além dos efeitos de realidade que ela produz sobre si mesma. Assim, não precisamos explicar unicamente o “motivo” que leva pessoas trans a serem trans em função de uma descontinuidade entre “real” e “fantasia” que produziria um delírio – o fato de pessoas “acreditarem” pertencer ao gênero desde uma posição trans de reconhecimento social – é preciso explicar também fundamentalmente o motivo que leva pessoas cis “acreditarem” pertencerem ao gênero que reivindicam desde uma posição cis de reconhecimento social – e se sustentarem para tanto, por meio da própria verdade. O estudo da cisgeneridade para além da produção de evidências sobre os sexos é fundamental para, de um lado, observar o funcionamento da própria verdade na constituição da subjetividade cisgênera quanto, de outro, proporcionar meios para o exercício de uma relação radical de alteridade para com os sujeitos trans de forma a constituir um espaço de reconhecimento social das identidades trans fora do âmbito psicopatológico.
15/08/2016
Essa história de colocar que mulheres trans não poderiam “escolher perder privilégios masculinos” e por isso não seriam “mulheres de verdade” desconsidera simplesmente que a existência de uma sociedade transfóbica e suas consequências não se dá num nível individual de escolha. Nenhuma pessoa trans escolhe sofrer transfobia pelo fato de transicionar e ser vista como pessoa trans na sociedade. Este pensamento é perverso porque esconde a real origem da transfobia na sociedade ao considerar que a violência que pessoas trans estão expostas surgiria somente no ato individual de alguém poder transicionar ou ser visto como trans e acaba, querendo ou não, culpabilizando pessoas trans pela própria transfobia. Transfobia, meus caros, é produto de uma sociedade, de uma cultura que legitima e naturaliza violências. A nossa luta reside aí caras feministas, no questionamento e resistência a essas violências.
É muito perversa a forma de como um pretenso feminismo que se diz radical inverte as causas pelas consequências e ao supostamente criticar um individualismo, está na verdade chafurdando nele.
A transfobia faz parte do funcionamento estrutural das violências de gênero, aprendam isso. Isso é apreender a dita materialidade das intersecções que fazemos em nossas análises. Transfobia não se origina num suposto ato fundador de “homens que escolhem ser mulheres”. Que tal mais materialismo e menos individualismo liberal? Que tal substituir essa análise liberal e culpabilizante por uma a contestação radical que implique considerar que todas essas violências e exclusões que decorrem de normas de gênero não se justifiquem de forma alguma a nível de escolha de indivíduos? Que tal o feminismo finalmente conseguir parar de inverter efeitos pelas causas e deixar de culpabilizar pessoas trans pela violência de gênero e normas que estão submetidas?
16/08/2016
Depois de mais de uma década das primeiras formas de implementação de nome social em delegacias de polícia e presídios; depois de alguns anos da implementação do nome social em hospitais e ambulatórios, depois de alguns outros anos do nome social entrar nas universidades e escolas, depois de tudo isso a gente vê o conselho de medicina aprovando o exercício da profissão de médico a partir do nome real (dito social) de pessoas trans. Há uns anos atrás a OAB já havia permitido isso no âmbito dos advogados (e isso tem nome: Márcia Rocha, travesti advogada que esteve por trás dessa implementação).
Até então – muito tempo atrás – tinha travesti e transexual nas prisões e delegacias pedindo nome social como PRISIONEIRAS ou ACUSADAS de algum crime. Até a algum tempo tinha travesti e transexual nas clínicas e nos hospitais pedindo nome social como PACIENTES – ainda sob o viés patologizador, na maior parte das vezes. Até pouco tempo tinha travesti e transexual nas escolas e universidades pedindo nome social como ESTUDANTES.
Percebam que só agora, em 2016, vemos notícias de futuros médicos e médicas que são pessoas trans reivindicando o uso do nome social. Isso é sintomático de uma realidade de exclusão social, desigualdade e transfobia histórica. Só agora travesti e transexual vai poder ser médica ou médico. Só agora estamos alcançando uma ínfima visibilidade em postos sociais mais valorizados.
Vale lembrar que a presença do uso de nome social em certos espaços (e não em outros) é um ótimo termômetro social. Os direitos não são adquiridos por decretos em abstratos, eles só são adquiridos na prática nos espaços pela prática, pela ocupação de pessoas trans nestes espaços que nos são tão inóspitos e excludentes. É sim uma vitória, pois essa notícia desvela que estamos começando a ocupar espaços legitimados que nos foram historicamente barrados. Mas é uma vitória ainda parcial, pois ainda se dá sob o âmbito da cidadania precária, ainda se dá sob a forma de uma denúncia de uma ainda exclusão de acesso a tais espaços imensa, sob a ausência de uma lei de identidade de gênero.
Não tenho muita dúvida que deve ter sido mais um caso individual que tenha abrido esse precedente na medicina. Sei bem como foi o uso do nome social na Unicamp, por exemplo. O fato de sermos fulanas e ciclanas a conseguirmos estes direitos nestes espaços diz muito da exclusão transfóbica, já que só algumas poucas de tantas outras conseguem passar pelo moedor de carne que significa ocupar o espaço público, as instituições e a cidade sendo trans. Mas o fato de sermos fulanas e ciclanas, pioneiras em certo sentido, não muda o fato de que o ganho e o acúmulo de direitos remonta toda uma história de resistência que é coletiva e histórica.
21/08/2016
A minha preocupação com a desconstrução do estigma que recai sobre “homens que se vestem como mulheres” não vem de hoje. Por isso, vou relembrar alguns textos que eu já fiz há um algum tempo, anos até: texto do dia 23/04/2016 e texto de 19/02/2015 .
Vejo como muito recorrente o movimento de travestis e transexuais tentar estabelecer limites entre nós e uma imagem de sujeitos dispersos que estaria marcada por um imaginário bastante pernicioso de “homem que se veste de mulher”. Evidentemente mulheres trans e travestis não são “homens que se vestem de mulher”, mas a nossa tentativa de nos desvencilharmos dessas figuras é bastante sintomática e precisa de uma análise mais atenta sobre os efeitos que gera e os pressupostos que elege.
Há um convite muito fácil para que não nos associemos com tais imagens. Mas antes mesmo da gente tomar esses limites como óbvios, acho fundamental questionarmos o porquê de estarmos fazendo isso pois podemos inconscientemente reforçar estigmas que são, justamente, transfóbicos. Qual a necessidade que temos, enquanto mulheres trans e transexuais, de dizermos que não somos “homens que se vestem de mulher”? O que haveria de estigmatizante nestas imagens não pode passar como se fosse natural, sob o perigo de estabelecermos novas divisões potencialmente problemáticas. É preciso desnaturalizar estigmas justamente lá onde eles parecem mais evidentes e naturais.
Comentário de Raíssa Éris Grimm
então, sabe que eu entendo, e acho super tentador esse discurso (por vezes me captura e eu me vejo pensando assim).
pesa sobre a gente um discurso forte de que seremos mais aceitas quanto mais passáveis formos (e por vezes somos iludidas com essa promessa) – o que cria muitas vezes uma relação de rivalidade e competição entre nós, de ficarmos nos olhando e comparando “quem é essa que mal chegou, não passou por tudo que eu passei, e já quer reivindicar os mesmos direitos que eu?”.
A gente cria a ilusão de que se existisse um consenso, se existisse uma cartilha de bons comportamentos consensuais sobre o que é ser trans, conquistaríamos mais direitos – daí quem são essas que chegam e ficam complicado tudo?
O problema é que são ilusões. São barganhas falsas do cis.tema. Porque essa linha de corte, ela é arbitrária – ela sempre pode ser extendida mais longe, ou mais perto de como estamos. Porque não é sobre o que somos ou o que fazemos – é sobre o poder do olhar cisgênero em nos definir, em nos avalizar ou desavalizar. Independente do que fizermos…
23/08/2016
Se você é trans aliado e usa palavras como “individualismo”, “liberalismo” e “materialismo” com o mesmo sentido que o discurso radfem emprega, certamente teremos aí um problema ou no mínimo uma questão para ser revista a nível teórico.
Vamos a um exemplo muito comum: dizer coisas do tipo “não binaridade não tem materialidade”; “x não é muito material” ou “y faltou materialidade” não faz o menor sentido a partir de um ponto de vista efetivamente materialista. Materialismo é uma perspectiva teórica a qual você se filia ou não; materialismo não reside sobre uma qualidade a qual certos objetos possuem ou não. Se você quer ser materialista o enunciado correto seria: “me proponho a pensar a não binaridade a partir de uma perspectiva materialista”. Numa perspectiva materialista todos os objetos de análise são materiais.
Outro exemplo: lutar para que a expressão de gênero dos sujeitos não implique em violência individual – ou seja, para que os indivíduos de fato tenham mais liberdade individual – NÃO é uma luta liberal ou individualista necessariamente. É possível lutar para que a expressão de gênero seja respeitada por um viés de mercado – isso sim seria uma assimilação de lutas legítimas do movimento de resistência pelo capitalismo.
Surge, portanto, a partir de uma perspectiva materialista destas lutas, a necessidade em denunciar que o mercado não é capaz de fornecer liberdade e cidadania, pois a lógica que perpassa a inclusão pelo mercado é excludente (ou seja, a partir do momento em que você não tem $ você não é incluído). Mas simplesmente dizer que a luta contra a violência que perpassa o âmbito do indivíduo supostamente seria liberal ou individualista é um erro grosseiro, ainda mais quando estamos falando de questões de gênero e sexualidade; seria o mesmo que dizer que a luta pelo aborto é necessariamente liberal ou individualista porque se luta pelo direito ao próprio corpo.
Materialidade também NÃO é sinônimo de “concretude” no sentido de fixidez (já que o materialismo é dialético justamente pra mostrar que as coisas estão em constante transformação); materialidade também não é sinônimo do que nós achamos como “óbvio” ou “evidente”. Vejam por exemplo que a materialidade de um objeto pode residir justamente no que desafia o senso comum sobre determinada coisa e no que não é possível de ser visto a primeira vista, digamos assim, como a mercadoria. As descrições sobre o fetichismo da mercadoria no sistema capitalista pela teoria marxista é um ótimo exemplo disto, já que a as relações sociais que produzem a mercadoria fazem ela parecer se tratar de uma pura troca de objetos entre sujeitos livres mediados por um valor de troca, sendo que o que a mercadoria faz é justamente “esconder” o seu processo de produção e o trabalho que é empregado em sua produção. Ou seja, a materialidade da mercadoria no sistema capitalista reside justamente nas relações que a produzem mas se camuflam no mesmo processo.
Então meus caros, se existe uma “materialidade do gênero” podem ter certeza que não se refere à obviedade e concretude de genitais, mas como o gênero se constitui numa relação social.
28/08/2016
Olha o que eu li por aí:
“subjetividade não é política coletiva, e pautar política por subjetividade é individualista.”
Nem sei por onde começo porque são tantos equívocos pressupostos neste enunciado… talvez então comece pela negação: de fato o conceito de “subjetividade” não é sinônimo de “política coletiva”, o que não significa dizer que a política não seja ou não possa ser baseada em subjetividade.
Subjetividade NÃO é uma ideia sobre o mundo e de mim mesmo que estaria descolada da “realidade” ou da coletividade; subjetividade não é um desejo abstrato sobre o que eu quero que o mundo seja; subjetividade não é uma ideia deslocada do mundo, subjetividade não é uma mentira que distorce o real; subjetividade não é sentimento – muito embora os sentimentos constituam formas de subjetividade.
Subjetividade diz respeito a qualidade do que é sujeito. Subjetividade é o processo de se tornar sujeito de múltiplas formas, às formas de vida em sociedade. Políticas públicas são feitas por sujeitos – e sujeitos não são indivíduos. Logo, subjetividade também NÃO é individual.
Então sim… é inevitável o fato de políticas serem pautadas por subjetividade pelo fato incontornável de que a política seja feita por sujeitos. Falar em subjetividade não implica “individualismo” a menos que você ache que a política seja feita sem a participação de sujeitos em seus processos de constituição de si e de alianças com o outro – ou seja, pela subjetividade.
29/08/2016
Gente, vou falar sobre uma coisa relacionada com o corpo que parece que ainda é uma questão. Para nós, mulheres transexuais e/ou travestis, mostrarmos nosso corpo – em especial, nossos seios – publicamente é um ato político, assim como é para mulheres cis (há também a questão da amamentação aqui). É sobre direito ao corpo ser visível no espaço público, é sobre questionar a sexualização de uma parte do corpo. As paradas LGBT, as marchas das vadias são locais em que isso se torna visível (e possível).
Mostrar os seios não é mera provocação ou piada. Ouço também falar que mostrar o corpo seria uma forma das feministas estarem, na verdade, se auto objetificando sob o olhar machista. Eu discordo completamente dessa leitura também. Dizer que mostrar o corpo necessariamente se dá em virtude de um assujeitamento ao olhar machista é equívoco, pois desconsidera que as mulheres existem para si e tenham vontades próprias e também desconsidera os múltiplos sentidos que o corpo no espaço público pode ter e provocar. Se não podemos mostrar nossos seios sem sofrermos constrangimento, é porque há uma norma que precisamos desconstruir socialmente, é porque precisamos falar sobre a leitura que fazemos desses corpos e, portanto, sobre a autonomia e desejo dos sujeitos que possuem estes corpos.
No que tange especificidades de mulheres trans e travestis, mostrar os seios é algo capaz de questionar inúmeras arbitrariedades jurídicas. Vejamos o que faz brilhantemente a Indianara Siqueira, ao ser intimada pela polícia por mostrar os seios e ser acusada de “atentado ao pudor”: se o Estado quer puni-la, automaticamente o Estado teria que a reconhecer como mulher, e portanto, teria que reconhecer a identidade de gênero das pessoas trans; caso contrário, se a considera legalmente como homem, teria que a isentar do “crime” de mostrar os seios – a menos que se comece a proibir que os homens também possam exibir seus mamilos publicamente (o que é obviamente improvável, risos).
07/09/2016
Vamos falar sobre coisas absurdas e melhor ainda, coisas absurdas que promotores de juízes fazem em nome da proteção de crianças que na verdade é mais pura transfobia. Um promotor de justiça de Goiás fez um documento de “Recomendação”. Caso tal “recomendação” não seja acatada pela mãe da criança, a responsável irá sofrer “medidas judiciais cabíveis”. Vou explicar sobre o que se trata.
O peso de lei dessa “recomendação” eu desconheço, assim como desconheço também que tipo de medida judicial seria cabível para o fato de uma criança dizer num vídeo a famosa frase “um beijo para as travestis”. Sim, você leu corretamente: um promotor de juiz emite uma “recomendação” para que uma mãe retire um vídeo em que o filho dela está falando “um beijo para as travestis” sob o argumento de preservação da integridade do menor. O promotor argumenta que se trataria de “erotização precoce” uma manifestação como “um beijo para travestis” enunciada por uma criança e que portanto, ela deve ser “protegida de estímulos abusivos”.
Eu me pergunto então o que iremos fazer quando os abusos contra crianças partem justamente das figuras do Estado. Eu me pergunto o que iremos fazer quando o abuso acontece justamente em virtude da pretensão de proteger crianças de abuso. Eu me pergunto então o que fazer quando são os agentes da lei que interpretam a lei a seu bel prazer de forma a naturalizar normas sociais de gênero. Eu me pergunto o que fazer quando, em nome de uma suposta proteção a crianças, se naturaliza a cisgeneridade como neutralidade não apenas do gênero do humano, mas de crianças. O que fazer quando um promotor acha que um enunciado do tipo “um beijo para travestis” se torne algo inapropriado para a fala de uma criança? Que tipo de sociedade é essa em que vivemos a ponto disso se tornar viável?
Vamos fazer um exercício de imaginação – muito embora acredito que o referido promotor dificilmente conseguiria fazê-lo espontaneamente – em que a mesma criança enunciaria agora a frase “um beijo para os cisgêneros”. Seria erotização precoce? Seria um abuso dos responsáveis expor uma criança a esse tipo de enunciado em um vídeo? Haveria recomendação judicial neste sentido a fim de evitar que crianças sejam expostas a temas “complexos e impróprios em virtude da sua falta de consciência e autodeterminação” (termos estes usados pelo referido promotor ao se referir à travestilidade na boca de criança)?
Ora, sabemos que não, pois sabemos o peso que a cisgeneridade tem como o gênero pretensamente natural, universal, normal, e portanto, neutro, para todos os sujeitos, inclusive crianças. O que este promotor talvez não saiba é que com a “recomendação” que ele emite se está atacando o direito de pessoas trans serem trans em nossa sociedade. Ao afirmar que a transgeneridade é algo impróprio para crianças, se justifica a violência, a exclusão, a expectativa de vida de 35 anos para travestis no país e o fato de ocuparmos o pódio de assassinatos de pessoas trans. Ao afirmar que transgeneridade é assunto impróprio para menores o que ele está fazendo é um ataque transfóbico e um verdadeiro abuso a crianças: pois veja bem querido promotor, nós pessoas trans temos o direito de existir em nossa sociedade e não passamos a existir numa passe de mágica quando fazemos 18 anos. Ser trans até onde se saiba, não é crime, e habitar a transgeneridade sendo criança também não é. Até onde eu saiba, não há lei que me permita ser trans apenas a partir da maioridade. Até onde eu saiba também, não é necessário sermos maiores de idade para enunciarmos a simples frase “um beijo para travestis”. Acreditar que a transgeneridade representa um “perigo a vulnerabilidade de crianças” diz muito sobre a transfobia de nossa sociedade.
14/09/2016
Sabe o que fico pensando sobre o recente caso da mulher transexual, Taísa Silva, de 21 anos, que foi filmada sendo agredida brutalmente junto com sua irmã, Luciana, por motivo de transfobia? Eu penso o mesmo sobre o caso Verônica Bolina. Fico pensando que por uma mera questão de acaso a cena não tivesse sido filmada e a violência viraria mera estatística (e não teria gerado repercussão na internet, por exemplo). Ou ainda: nem ao menos estatística teria virado. Quantas Taísas existem por aí e são sumariamente ignoradas e o cotidiano simplesmente se segue, inalterado? Teríamos outras Lucianas ou outros familiares que prezem pelas nossas vidas a fim de nos garantir uma proteção providencial? Poderia significar a diferença entre a vida e a morte?
Se a constatação das violências, das marcas indeléveis que elas cravam em nossa carne, é algo que dói naturalmente, constatar que a possibilidade dessa constatação se dá a partir de contingências tão limitadas e precárias – o fato de alguém ter gravado o crime, que por acaso se tornou viral na internet; ou ainda, constatar a hipótese de que a vida corre por um triz – dói ainda mais, de forma redobrada. Não há Estado democrático de direito, nem lei; há sim tão somente a circulação e a repercussão na internet de nossas mazelas em formas de vídeo ou imagens e áudios (como no caso de Verônica).
A imaginação das nossas possibilidades de existir dentro de um mundo transfóbico é muito pesada, perpassada por um complexo de armadilhas infinitas. Viver numa sociedade em que se extermina a população trans nos coloca numa posição na qual as nossas vidas – o direito à vida – é uma mera contingência. Enquanto as políticas públicas e o Estado falharem miseravelmente e não puderem garantir direitos e cidadania para a população trans, caberá à sorte o fato de permanecermos vivas – de alguma forma.
02/10/2016
Ao que tudo indica, pessoas cis ficam muito incomodadas quando são “classificadas como cis”. Pessoas cis não querem ter identidade de gênero conforme às expectativas – afinal de contas, identidade de gênero é coisa de gente trans, patológica. O que as pessoas cis não suportam é na verdade se verem definidas a partir da posição trans, da transgeneridade, das pessoas trans. Ao se recusarem a se perceberem portadores de uma identidade, elas tentam denegar a existência da artificialidade dos seus próprios gêneros – achando que com isso podem pressupor que apenas pessoas trans sejam artificiais.
O que as pessoas cis não suportam é perceberem que elas possuem sim identidade, já que a cisgeneridade não é natural. Elas não suportam perceber que é preciso performar a cisgeneridade para que o gênero delas tenha a impressão de uma ontologia.
No fundo, esse incômodo das pessoas cis só mostra o que elas sempre já souberam: se você não é trans é cis. Não é difícil de entender. Mas há o estranho fenômeno de pessoas que não se reconhecem como trans ao mesmo tempo em que denegam a cisgeneridade.
O que talvez seja difícil de entender é que quando falamos de pessoas cis – já que nem todas são trans, olha a revelação bombástica! – isso não implica considerar que elas sejam conformadas de forma absoluta com as expectativas normativas do gênero. Talvez seja difícil de entender que falar sobre cis é sobretudo dar visibilidade para pessoas trans a partir do momento em que você nunca sofreu constrangimento e violência ao apresentar documentos. Talvez seja difícil entender o termo cis a partir do momento em que você nunca teve acesso a direitos fundamentais negados com base em expectativas cisnormativas de existência.
Sim, isso é mais um desabafo sobre a minha frustração com a incapacidade de certas pessoas cis conseguirem estabelecer uma mínima relação de alteridade com pessoas trans.
05/10/2016
Vou falar sobre um assunto que vira e mexe se coloca na militância virtual: o suposto “privilégio” de que homens femininos tem em relação a mulheres masculinas. Algumas pessoas argumentam que os homens femininos são ovacionados em detrimento das mulheres masculinas nos espaços ditos “desconstruídos”.
Bom, vamo lá, que tem muito pressuposto aí que precisa ser criticamente trabalhado a fim da gente não reproduzir transmisoginia. Eu tenho sempre o pé atrás com pessoas que reclamam que homens femininos estão “ganhando atenção demais”. Aliás, como medir isso, em que espaços de fato homens femininos são “aplaudidos” e em que medida eles são ovacionados em detrimento de mulheres masculinas?
Eu explico o porquê eu tenho o pé atrás: sabemos o quão limitado são os espaços e contextos em que homens femininos são empoderados em suas feminilidades. Dizer que eles estariam sendo “muito elogiados” me parece beirar um discurso muito conservador, porque há de implícito, de forma ou de outra, de que esse empoderamento não seja importante.
Eu entendo o seguinte: a partir do momento em que a feminilidade de homens é tida como abjeta e usada como justificativa de violências e exclusões, nós precisamos sim fortalecê-la E a meu ver, isso não implica desempoderar mulheres masculinas, muito pelo contrário. Não acredito que seja preciso elogiar homens femininos em detrimento de mulheres masculinas.
Agora, tudo bem, vamos partir então da hipótese sobre a existência de certos espaços e contextos que privilegiam homens femininos em detrimento de mulheres masculinas – a partir de todas as ressalvas que eu já fiz acima. Supondo então a existência desses espaços assimétricos, em que mulheres masculinas não são suficientemente empoderadas, o que fazemos diante disso:
(A) Vamos apontar que homens femininos estão reproduzindo “estereótipos de gênero”, vamos falar que homens femininos estão romantizando opressão das mulheres cis ao serem femininos, vamos dizer que é tudo macho, “piroco” privilegiado, falar também que “em entrevista de emprego não se vê homem com saia” e coisas afins;
(B) Vamos de fato empoderar mulheres masculinas, vamos construir espaços para que mulheres possam expressar livremente seus desejos para além de normas, vamos denunciar violências que mulheres masculinas sofrem em virtude de não se encaixarem nas normas de gênero, vamos parar de culpabilizar as vítimas, vamos dar visibilidade para mulheres masculinas na música, na arte, em diversos espaços sociais, resgatar seus históricos de luta, etc.
Percebam como a alternativa A não garante de fato nenhuma forma de resistência real contra o fato alegado de que mulheres masculinas não são elogiadas na mesma medida em que homens femininos são. Percebam que a alternativa B não pressupõe um ataque às formas femininas dos homens se expressarem.
07/10/2016
Vivemos num país tão transfóbico que medidas de retrocesso em que se retiram direitos fundamentais de pessoas trans se dão sob uma forma de retórica tão cínica que até mesmo fingem que se importam com “ética” e com o suposto estatuto de “cidadania” das pessoas trans. Sobre o que eu to falando? Sobre a revogação do direito das pessoas trans poderem usar os espaços em hospitais adequados às suas identidades de gênero. A notícia é um pouco antiga, de julho de 2015, mas me surpreende o quanto entidades que supostamente defendem o direitos das minorias deixam passar batido questões fundamentais.
Vejam o enunciado da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual/CEDS-RIO:
“A alteração na portaria da Secretaria Municipal de Saúde apenas cumpre uma exigência da Procuradoria, determinando que seja de responsabilidade do médico que realizar o primeiro atendimento o parecer sobre a transexualidade. Para que, desta forma, o reconhecimento da identidade de gênero seja técnico, ético e profissional, como toda cidadã ou cidadão transgênero merece de nossos servidores.” (https://www.facebook.com/CEDSRIO/posts/823116374423752)
Ou seja: aquela velha história do direito à própria identidade dependendo do parecer de terceiros (médicos). Eu me pergunto qual de fato é a necessidade de um intermediário médico para que a identidade trans seja reconhecida. Eu me pergunto aliás quantos médicos de fato são “habilitados” ou minimamente preparados para fazerem esses laudos.
Ora, isso é um paradoxo em termos: o laudo deveria apenas atestar o que os próprios sujeitos afirmam de suas próprias identidades. Mas o que se põe aqui não é apenas a mera necessidade de um intermediário mas sim a necessidade de um critério que exclua certos sujeitos. A gente sabe que os excluídos do laudo patológico de transexualidade têm raça, classe, (falta de) passabilidade cisgênera dentre tantos outros marcadores sociais de subalternidade.
A gente sabe o que isso significa na prática: pessoas trans tendo não apenas o direito a auto determinação negado como também do acesso a espaços. Colocar a responsabilidade do “parecer sobre a transexualidade” na mão dos médicos significa simplesmente o controle médico sobre o acesso a direitos que deveriam ser INALIENÁVEIS. Sabemos que esse controle não esta de fato guiado por um perspectiva “ética e profissional” e que respeitaria a nossa cidadania.
Menos cinismo e mais reconhecimento da realidade precária de acesso a saúde de pessoas trans neste país em que a expectativa de vida da nossa população é de cerca de 30 anos.
Se TODO cidadão trans merece ter seus direitos inalienáveis assegurados não há nenhum motivo para defender a exigência do “parecer técnico” sobre transexualidade feita por médicos. Vejam só: não há nem mesmo a possibilidade de existência de um “parecer técnico” sobre a transexualidade pois a transexualidade não é condição patológica discernível de ser catalogada, transexualidade é uma construção identitária que se dá de múltiplas formas pelas diferentes narrativas sujeitos. A transexualidade, portanto, reside na narrativa dos sujeitos, e não em laudos e “pareceres técnicos”. Reconhecer DE FATO nossa cidadania enquanto pessoas trans pressupõe a auto determinação de nossas identidades. Nós pessoas trans NÃO PRECISAMOS de “pareceres técnicos” para termos nossa cidadania respeitada. Condicionar o acesso a direitos básicos a “pareceres técnicos” é simplesmente um erro.
Esta proibição à auto determinação das identidades só se sustenta de fato a partir do momento em que se pressupõe que pessoas trans representam um suposto “perigo” às demais pessoas cis. Conceber a auto determinação como algo que represente um perigo só se sustenta a partir de um discurso cissexista. Nós pessoas trans continuaremos a denunciar o caráter irracional destas medidas e a reforçar a importância do caráter inalienável de nossos direitos básicos.
18/10/2016
Drops de reflexões: sobre sujeitos que estão na borda das categorias cis/trans, desejo de se classificar e a análise das relações sociais de privilégio e opressão; vira e mexe e algumas pessoas se questionam “sou bicha e sapatão e sou cis?” “mas não sou ‘completamente’ cis ou trans, então como fica?”:
Acho que a saída pra esse impasse, sobre bichas e sapatões (e demais sujeitos que habitam as bordas), não é querer achar uma resposta universalizante “homem e mulher bicha/sapatão são cis”. A importância da análise sobre cisgeneridade não reside na classificação das pessoas, mas sim sobre a análise crítica dos processos de naturalização do gênero com base na norma cis.
Então, voltando pra o questionamento: é e não é ao mesmo tempo. Não existe uma identidade cisgênera coesa absolutamente (o que não implica em observar como as relações de privilégio podem se contextualizar através de diversos recortes, uma delas é justamente a cisgeneridade). Por exemplo: é óbvio que uma bicha sofre violência transfóbica em várias esferas sociais, isso não nos impede de compreender outras possíveis questões, se por exemplo, se essa pessoa afeminada não buscar retificação de nome, ela não estará submetida a certos processos de violência (que incidem sobre o controle jurídico e médico das identidades trans).
Então gente, existem sim “pessoas cis” mas não como essência, mas sim como forma provisória de se enquadrar de forma mais ou menos precária nos padrões regulatórios da cisgeneridade. E pra gente compreender a conformidade e desconformidade é preciso sobretudo fazer RECORTES ANALÍTICOS que visem CONTEXTUALIZAR as relações de opressão e privilégio. Então não entra a pertinência de responder se individualmente alguém “é ou não é” cis, como se existisse a possibilidade de uma resposta absoluta e fixa pra essa pergunta; e sim compreender: estou ocupando algum – dentre tantos possíveis – lugar de subalternidade existencial+econômica+simbólica+social?
Comentário de Nico Sales
A questão pra mim nessa discussão tá no fato de que cis não se configura como uma identidade de auto identificação… Ninguém se entende como cis ou se assume como cis, as pessoas cis se entendem como mulher ou como homem porque, historicamente, ser cis é isso né, ser “apenas” a norma, o default. Aí a controvérsia surge nessas fronteiras arbitrárias: as bichas se entendem como homem? As sapatas se entendem como mulheres? As bichas são entendidas como homens? As sapatas são entendidas como mulheres? A nenhuma dessas quatro perguntas há respostas universais e totalizantes (Monique Wittig que o diga), e isso parece que nos causa um impasse, quando na verdade só aponta pra uma diferente operacionalidade do que é ser cis, no caso, de que é muito menos sobre um grupo coeso auto identificado como tu disse, e muito mais sobre condições contextuais de privilégio e de validação frente o que é ser mulher e o que é ser homem… talvez a “coesão” surja apenas em sujeitos cis hétero, mas nem sempre também. Fiz algum sentido? 😛
19/10/2016
Sobre quando se diz que a transexualidade seria uma “criação médica”. Isso faz sentido, mas é importante não tomar essa afirmação como algo absoluto, estático ou dogmático. É importante apontar os sentidos históricos que percorrem as palavras, nesse aspecto é sim relevante apontar que a transexualidade está fortemente ligada como uma noção no discurso médico como forma de controle (não só médico, mas também jurídico, diria também social, de uma forma mais ampla, ou biopolítico, se preferirem também).
Contudo, é fundamental também não esquecermos da nossa posição crítica: temos que entender que a própria transexualidade “em si” vai além do controle médico e dos diversos poderes repressivos. Antes de ser mero produto de um discurso de poder, a transexualidade é uma vivência (múltipla, exposta ao social e histórico) de sujeitos que resistem a estes poderes. Esse é o primeiro ponto sobre transexualidade.
Agora: sobre as minúcias de diferenciação entre transexualidade, travestilidade e transgeneridade. Acho aqui novamente: é importante apontar para o histórico de significação destes termos: eles possuem nuances de significação a partir dos contextos em que são enunciados. O que pode ser um pouco difícil de entender é que esses conceitos ora designam coisas muito semelhantes ora designam coisas diferentes, ou então mais ou menos diferentes. Talvez seja difícil de entender que a própria equivocidade faz parte constitutivamente da significação das palavras, isto porque essas “palavras”, além de serem palavras são construções identitárias sociais e históricas.
Acho que o importante a se defender seria compreender essas diferenças e semelhanças de formas estratégicas: a fim de não silenciar os discursos minoritários, diferentes, e assim visibilizar especificidades de uma questão determinada ao mesmo tempo em que podemos articular uma coalizão para representação política (como forma, por exemplo, de mobilizar uma identidade coletiva a fim de se reivindicar direitos).
Lutamos por exemplo para que a travestilidade fosse incluída como uma identidade coletiva que reivindicava acesso a cuidados médicos específicos. Ora, vejam aqui que não se trata apenas de incluir um nome: incluir travestis nas políticas de cuidado a saúde representou – no nosso contexto brasileiro – justamente uma forma de resistência ao discurso biomédico de controle de identidades, caso vocês não saibam, as travestis estavam arbitrariamente (ou não tão “arbitrariamente” assim, já que se trata na verdade de uma forma de transfobia específica, diria travestifobia, com fortes elementos de racismo, preconceito de classe e cissexismo/binarismo) excluídas de protocolos de acesso a cuidados médicos específicos – como acompanhamento hormonal.
24/10/2016
Mais um pequeno desabafo aqui, e que é também recorrente e sistemático:
Pessoas trans estão muito preocupadas em sobreviver numa sociedade excludente: trabalho, família, moradia, educação, saúde, direitos jurídicos, e etc são esferas em que nossos direitos são negados e lutamos para podermos sobreviver em um mundo tão árido. Nada nestas esferas é campo pacífico para pessoas trans.
Pessoas cis, contudo, estão muito mais preocupadas com pessoas trans a partir do momento em que elas, pessoas cis, se sentem “enganadas” por nós. A maior preocupação real de pessoas cis em relação a nós é para não serem “enganadas” em relacionamentos afetivos. E inclusive fazem altas teorizações complexas sobre isso, vide página sobre “feminismo radical didático”.
Percebam a assimetria? Homens cis se sentem no direito de nos assassinar se os “enganamos”. Homens cis se sentem livres para aproveitar o estigma transfóbico para lucrar com publicidade. Homens cis se sentem livres para monetarizar o escárnio em propaganda de cerveja, em peça publicitária de peças de carro “defeituosas” – já que a metáfora reside justamente no fato de mulheres trans e travestis serem vistas como objetos falsificados.
Mulheres cis em nome do feminismo se sentem no direito de nos resumir a “buracos cirúrgicos” como justificativa para não se relacionar conosco. Como se de fato isso fosse uma questão; como se fosse uma questão real em que existisse a necessidade de se justificarem; se é “justo” poderem dizer que podem não se relacionar conosco sem serem transfóbicas. Como-se-isso-fosse-uma-questão-concreta. Como se existisse uma legião de travestis obrigando pessoas cis se relacionarem conosco. Como se ser travesti e transexual em nossa sociedade representasse status e posição hegemônica para tanto. Como se fosse necessário “provar” que mulheres trans e travestis são homens para daí dizer que lésbicas não “precisam” se relacionar conosco. Talvez pra essas pessoas se eximirem de suas culpas; mas as culpas de pessoas cis não nos interessam. É uma rede complexa de discursos transfóbicos que além de distorcerem nossos discursos, abaixa tremendamente o nível do debate público sobre identidade de gênero.
É tamanha distorção para poucas palavras e são poucas palavras pra eu fazer o meu desabafo. É uma distorção desonesta das críticas reais de pessoas trans à uma sociedade excludente – incluindo o campo afetivo, mas nunca foi só sobre isso, com o viés que a cisgeneridade dominante quer pressupor. Não é sobre você poder justificar a sua ojeriza por pessoas trans. NÃO é sobre você, pessoa cis, justificar o fato de você não querer se relacionar afetivamente com pessoas trans. Isso jamais foi uma questão no discurso de resistência dos sujeitos trans.
Só pra reforçar aqui que não estamos nem aí para questões colocadas pela ótica distorcida da cisgeneridade. Nós não precisamos mendigar afeto para pessoas cis. Nós pessoas trans não somos cópias imperfeitas de pessoas cis. Construímos nossos bons afetos a partir de bons encontros, nossa luta nunca foi sobre desejar de forma ressentida quem nos odeia e que faz questão de manifestar o nojo que tem por nós.
31/10/2016
Sabe porque falar sobre crianças trans, ou seja, transgeneridade na infância soa algo absurdo? Porque a vida das pessoas trans é tida como absurda. Acham que falar sobre crianças poderem ser trans configuraria em “abuso” – aliás, vai muito na ideia de que a transgeneridade poderia “perverter” e “desviar” crianças inocentes. Só podem pressupor isso a partir do momento em que acham que nossas vidas são danosas às próprias pessoas trans e à sociedade. Só podem pressupor isso a partir do momento em que colocam a transgeneridade num local de doença, abjeção, exotismo, de alienação. Rolou uma discussão super desagradável em que várias radfems vieram falar se uma criança pode ou não pode ser trans num evento do SSEX BBOX.
Nós do movimento trans sabemos sobre a importância de defender formas de constituição de subjetividade para além de essencialismos, para além do desejo de encontrarmos uma suposta verdade imutável de nossas identidades, para além de concepções rígidas de identidade. Não queremos de forma alguma reiterar o que a cisgeneridade faz com as crianças. Quando falo em criança trans não estou querendo fechar as possibilidades múltiplas de experiência identitária das crianças, não estou dizendo que ser trans é “gostar de boneca e brincar de carrinho”. Ser trans não configura como algo que possui traços pré-determinados passíveis de diagnósticos, já que ser trans é necessariamente uma narrativa que parte da narração de si a partir de si mesmo.
Pessoas que dizem que falar em transgeneridade em crianças seria um “abuso infantil” ignoram que as experiências de pessoas trans são necessariamente diversas. Elas ignoram que a identidade trans não é um diagnóstico imposto de forma violenta por um médico, mas uma construção identitária que parte necessariamente do próprio sujeito.
Ninguém questiona que o reforço à identidade cis na infância poderia ser um abuso. Ninguém ao menos consegue perceber que o alinhamento às expectativas de gênero – a cisgeneridade – não é algo natural ou “saudável”. As pessoas dizem simplesmente “cisgeneridade? isso não existe”. Eu me pergunto: como pode existir transgeneridade sem existir cisgeneridade?
Fácil dizer que permitir a autonomia de sujeitos trans configuraria um abuso e deixar passar batido as produção de subjetividade – na infância – calcadas na cisgeneridade. A cisgeneridade é tida como normalidade, como saudável, ao contrário da transgeneridade.
Falar sobre crianças trans significa questionar a naturalidade e o caráter pretensamente “saudável” da cisgeneridade. Significa compreender que ao dizer que a transgeneridade na infância configuraria um “abuso ” se está reificando a cisgeneridade como normalidade do gênero de todas as pessoas – incluindo crianças. E isto é sim violento.
05/11/206
Eu fico triste com a forma como pessoas cis podem abusar e criar um imaginário – mesmo que completamente irreal – sobre pessoas trans. Quero dizer: o imaginário sobre pessoas trans em nossa sociedade é tão precário que as pessoas cis podem inventar as maiores mentiras e distorções do mundo para poderem reafirmar o estigma social que recai sobre nós.
Sabe sobre o que eu to falando? Sobre uma radfem pegar um texto transfóbico americano, fazer uma tradução porca, mencionando coisas completamente absurdas sobre mulheres trans e então pessoas brasileiras poderem ler isso e encontrarem algum nexo na baboseira toda. O texto em questão diz que mulheres trans tem “calcinhas sujas” e que desejam esfregar seus pênis nas pessoas e desejar o estupro de lésbica e … as pessoas leem isso como se fosse perfeitamente crível. Isso é o que mais me impressiona. Além de transfobia, somos uma sociedade colonizada. Aparece texto gringo falando que mulheres trans são estupradoras de mulheres cis e todo mundo acha que isso faz algum sentido. Não interessa que esse texto possa estar falando nada sobre nada, sobre uma realidade social que nem ao menos é nossa: se gringo está falando, é porque é verdade.
Eu acho impressionante como o poder das ideias se sobrepõe a qualquer realidade concreta. Já não importa falar sobre a relação entre os objetos que construímos no nosso discurso e a referência com o mundo. Não, o discurso transfóbico nem ao menos precisa se preocupar em falar sobre alguma coisa a partir da relação entre linguagem e construção discursiva da referência que, mesmo remotamente, teria alguma relação com a realidade concreta. O estigma fala mais alto, sempre. Basta falar que mulheres trans estão “invadindo os espaços” de mulheres com o desejo de as “estuprarem” pra que isso se torne uma verdade. O discurso transfóbico sustenta suas verdades não através de análises objetivas, mas tão somente a partir da pré-existência de um estigma.
06/11/2016
Algumas pessoas dizem que pessoas só “viram” trans para se “curarem” da homossexualidade. Agora, se redirecionarmos a relação e falarmos que algumas pessoas “viram” homossexuais para se curarem da transgeneridade… isso já não faz tanto sentido.
Quem nunca ouviu “tudo bem ser gay, mas travesti já é demais”?
Quais condições existenciais humanas que você luta para serem vividas pelas pessoas? Você pressupõe uma condição humana prévia pela qual você luta – calcada em normas heterossexuais ou cisgêneras? Você luta para um mundo em que pessoas possam ser trans? Ou você pressupõe que todas as pessoas trans são homossexuais cisgêneros “na verdade”? Que verdade é essa, de onde e como ela surgiu? Como você pode sustentar a ideia de que nenhuma pessoa pode ser trans a não ser que você suponha que ela esteja se (auto) iludindo?
Quando dizem que alguém só é trans porque internalizou um discurso de “cura da homossexualidade” o que se está fazendo na verdade não é uma crítica à cura gay. O que se está fazendo, de fato, é uma cura trans em direção à cisgeneridade como norma. Ou seja, ao tomar a cisgeneridade como norma, como impensado da condição humana, como “estaca zero” da verdade existencial.
Ao dizer que pessoas trans *só* – no sentido de uma generalização, ou seja, *todas* as pessoas trans – são trans porque supostamente não aceitariam a condição de homossexualidade (cisgênera) se está tentando, de fato, curá-las em direção à cisgeneridade. Porque pressupõe a não existência de pessoas trans, não pressupõe a existência de pessoas trans a partir do referencial existencial das próprias pessoas trans, para além da condição cisgênera. Pressupõe a cisgeneridade como condição natural da existência. Além, claro, de desconsiderar completamente as orientações sexuais das pessoas trans em sua real diversidade. Um duplo apagamento da condição trans: em nossas identidades (enquanto formas existenciais legítimas) e em nossa (potencial) sexualidade
Num primeiro momento, a crítica dessas pessoas à “cura gay” pode parecer subversiva, radical. Ela parece ser um discurso de resistência, de crítica às terapias violentas de reversão.
Porém, a partir do momento em que vincula toda forma de existência trans à internalização de uma suposta cisgeneridade como verdade anterior, se está negando à própria possibilidade de sermos trans – para além da cisnormatividade.
Pessoas são trans para além de “motivos” determinados. Procurar motivos que desvelem o quanto supostamente pessoas trans foram “iludidas” por um discurso de cura gay, por exemplo, é algo profundamente cissexista. A nossa existência trans não requer justificação, e portanto, não precisa ser compreendida em relações de causa e efeito nas quais a condição de naturalidade cis fosse perdida. A condição trans não é perda de uma natureza cisgênera, ela é afirmação de vida a partir de seu próprio referencial existencial.
Vocês não precisam ser transfóbicos para criticarem discursos homofóbicos como vemos nas “terapias de reversão”. Se entendemos o quão violento é para homossexuais cisgêneros serem empurrados para a heteronormatividade temos que entender, na mesma medida, o quanto é violento pessoas trans serem empurradas para a cisnormatividade – seja por discursos de “terapias de reversão” diretas, seja por discursos indiretos que se pretendem supostamente críticos às “curas gays”.
11/11/2016
Estou vendo um discurso de esquerda agora falando em priorizar questões “materiais” em detrimento das questões “simbólicas” ou “culturais”. Quer dizer: seria necessário falar sobre economia e trabalho e questões de minorias, tidas como “simbólicas e culturais”, é como se pudessem esperar, como se fossem secundárias, menos urgentes frente à realidade “material” da classe trabalhadora. Agora eu me pergunto: quais trabalhadores estamos falando?
Vá falar pra uma travesti que se prostitui por falta de oportunidades e em virtude de discriminação no mercado de trabalho que sua questão é “simbólica”. “Simbólica” e “cultural” passa a ser visto como “não material” e aí temos problemas já que questões culturais e simbólicas SÃO necessariamente materiais.
“Simbólica e cultural” é meu cú, vocês estão usando esses termos pra designar as lutas que vocês acham menos importantes, rifáveis. Acontece que para a travesti, o combate à transfobia está indissociável do acesso ao direito ao trabalho e uma vida digna. O combate às opressões está indissociável ao acesso a direitos fundamentais da classe trabalhadora.
Se vocês acham que discutir questões de minorias é uma pedra no sapato da esquerda para a “conscientização” do trabalhador homem branco cis e heterossexual cristão pai-de-família que “não se importa” com “questões simbólicas” usem as palavras corretas e digam o que vocês realmente pensam sobre as minorias, digam que vocês acham que suas vidas são menos dignas de serem vividas ao invés de dizer que são vidas meramente “simbólicas e culturais”. Para quem pertence à determinada minoria, sua vida não é “simbólica ou cultural”, é completamente material e concreta.
Não oponham questões econômicas com questões culturais porque questões culturais das ditas minorias sociais estão intimamente ligadas com as questões econômicas e materiais de forma indissociável.
Reproduzir a noção de que o “homem trabalhador” não se “importa” com questões de minorias – e daí concluir que questões de minorias são “secundárias” para a luta de classe – é inconscientemente deixar de lado justamente a CENTRALIDADE DAS QUESTÕES DE CLASSE. Vejam só, porque a classe tem raça, sexualidade, gênero, e demais marcadores sociais de diferença que sustentam relações hierárquicas de poder.
13/11/2016
Olha só o que eu já ouvi hoje “se transgeneridade fosse bom seria proibida”. “Transgeneridade é conservadora, Trump apoia pessoas trans porque quer fazer a cura gay”.
Se esquecem obviamente que Trump, como qualquer outro presidente, não governa sozinho, e por trás de Trump, vejam só, existem diversos políticos conservadores que já disseram que irão revogar inúmeras garantiras de direitos fundamentais para pessoa trans, como uso do banheiro. Trump pode até dizer que apoia pessoas trans, mas o mesmo não se pode dizer dos outros políticos que estão no seu governo. Da mesma forma que Trump diz apoiar os trabalhadores brancos empobrecidos pelas crises cíclicas do capitalismo, isso não significa que seu governo de fato vá significar um avanço para a classe trabalhadora.
Agora, vejamos como é ridículo concluir que as identidades trana são ou deixam de ser conservadoras com base na eleição desse presidente.
Então obviamente eu deveria estar esperando a proibição da homossexualidade cisgênera, já que a sociedade está querendo curar os homossexuais cisgêneros a qualquer custo que deveria ser óbvio que a homossexualidade cisgênera fosse “proibida” nas sociedades ocidentais. Afinal, se é “bom” é sinal de que deveria ser “proibido”.
Sim, é isso que eu já ouvi hoje “se transgeneridade fosse boa seria proibida”. “Transgeneridade é conservadora, Trump apoia pessoas trans porque quer fazer a cura gay”. Vejam como é bizarra a relação de causa e consequência. Claro, a sociedade ama pessoas trans e quer que todos os homossexuais cisgêneros se tornem trans para se curarem da homossexualidade.
Se esquecem de observar que a heterossexualidade de pessoas trans não é validada da mesma forma como das pessoas cis. Vá dizer que a família tradicional iria aceitar a travesti no seu almoço de domingo. Se a heterossexualidade de pessoas trans é aceita da mesma forma das pessoas cis eu me pergunto: cadê os casamentos tradicionais com pessoas trans sendo feitos e abençoados nas igrejas? Cadê pessoas cis assumindo travestis e transexuais para suas famílias da mesma forma como fazem com pessoas cis heterossexuais?
Bom, o discurso não importa estar em relação de coerência com a realidade, basta dizer que transexualidade é “cura gay” para gerar pânico moral. Quem sabe não se criam leis que criminalizem a transgeneridade neste processo, não é mesmo? Que tornem a vida das pessoas cada vez mais impossível de ser vividas na prática, já que nem ao menos usarmos um banheiro para fazermos necessidades básicas é ponto pacífico.
No fundo, é isto que essas pessoas querem: que sejamos execradas, culpabilizadas por um mal terrível algo que não cometemos e nem somos responsáveis. As pessoas trans são o bode expiatório de todo o conservadorismo e precisam ser sacrificadas.
O que essas pessoas inventam para reafirmar estereótipos negativos e esdrúxulos sobre pessoas trans não está no papel.
22/11/2016
Uma reflexão vale aqui por um enunciado que eu li sobre os “perigos” do pós modernos: sujeito diz: “acho muito mais importante lutar pelos trabalhadores do que lutar para que playboy use saia em universidade”.
Eu gostaria de falar muitas coisas sobre esse raciocínio e o centro do meu argumento seria de que essa frase é transfóbica. Alguns poderiam objetar “mas Bia, a luta de pessoas trans “de verdade” nada tem a ver com playboy que quer usar saia em universidade pra ‘zoar’”. Eu me pergunto: será mesmo? Qual é a visão e o imaginário social sobre pessoas trans? Nossas vidas trans não são vistas como dignas de serem vividas e qualquer deslegitimação da nossa causa política é efeito disto – mesmo que sob o véu da distorção.
Para quem tá falando em pós modernismo falar de uma luta pra “playboy usar saia” não se dissocia da deslegitimação como um TODO da luta trans. Pejorativamente, toda luta pela dignidade das vidas das pessoas trans pode ser resumida à “macho poder usar saia”. Toda vida trans não é vista como digna de ser vivida e qualquer pauta política de pessoas trans é vista com escárnio.
Eu há muito tempo tenho mostrado como é importante a nossa militância ser crítica ao estigma que recai sobre “homens que se vestem como mulher” justamente porque esse estigma recai de forma ainda mais pesada sobre travestis e mulheres trans.
O enunciado que fala sobre “playboy” tenta apenas camuflar a sua intenção: ridicularizar vidas e pautas, e sabemos quais vidas e pautas concretamente são inviabilizadas e invisibilizadas em nossa sociedade quando se tira chacota de uma luta “pra que se possa usar saia”.
Falar mal de playboy com discurso de esquerda é fácil, ninguém em sã consciência vai querer defender playboy. O problema é este esquecimento sobre vidas que são de fato muito mais vulneráveis de que as vidas de “playboy” e estão em jogo – a vida de travestis e transexuais expulsas de casa, do mercado de trabalho e de instituições que garantem direitos. Este esquecimento que é muito conveniente para discurso transfóbico, seja ele discurso de esquerda que se julga defender trabalhador.
24/11/2016
Hoje eu vi uma matéria curiosíssima. De um portal gospel, falando sobre uma ativista LGBT que estaria “contrariando o movimento LGBT” ao afirmar que não se nasce LGBT. É nesses casos que a gente vê a ideologia gritando.
Primeiro, não é todo movimento LGBT que diz que “nascemos assim”. Boa parte do movimento entende que as identidades, sejam de qual natureza forem, são construções sociais, históricas e simbólicas (ou seja, construções de linguagem). Quando partimos desta concepção de identidade, assumimos a noção de que as identidades não são “coisas em si”, ou seja, elas não existem enquanto positividade, mas existem na relação de alteridade com o outro, ou seja, alguém é alguma coisa na medida em que “não é” outra. Ou seja: na noção de identidade como uma construção social e histórica entendemos que as identidades não são auto evidentes, mas se constituem tão somente por meio de relações.
Eu já debati muito sobre essa polêmica de “nasci assim ou opção” e mostro que a noção de escolha pautada por um suposto livre arbítrio também não funciona quando falamos de subjetividade. Tampouco dizer que gênero e sexualidade não são inatas nos autorizaria concluir a defesa de certos discursos pautados na heterosexualidade e cisgeneridade como natureza, como nas terapias de conversão.
A ideia subjacente é de que alguém só seria LGBT por não “haver nenhuma possibilidade de escolha” e essa forma de pensar, em si, já é algo profundamente preconceituoso. Nós do movimento temos que desconstruir justamente essa ideia: se alguém “opta” por ser LGBT essa pessoa seria “louca” já que “ninguém gostaria de ser LGBT”. Nossas identidades são construções sociais sim e elas são extremamente importantes para a nossa constituição identitária, de forma com que precisamos lutar para que nossas identidades sejam respeitadas para além desse raciocínio que naturaliza a heterossexualidade e cisgeneridade – ou seja, lutamos para que as identidades minoritárias não sejam vistas como manifestações de sem sentido.
Tomar como um pressuposto inquestionável de que as identidades LGBT são a priori indesejáveis de serem vivenciadas pelos sujeitos é o que precisamos desconstruir. A lógica dominante diz o seguinte “se você não nasceu LGBT, LOGO, você pode mudar e ser hetero e cis porque isso seria a lógica”.
Este LOGO não é um operador lógico, ele só faz sentido discursivamente, a partir da forma como as relações de poder funcionam e são simbolizadas. Este funcionamento argumentativo sustenta os discursos de terapias de reversão de identidade de gênero e sexualidade. O caráter pretensamente “lógico” desta relação é construído discursivamente, ou seja, a partir de um posicionamento ideológico. Nós enquanto militantes temos que fazer é justamente “criar” outra lógica, outra cadeia argumentativa.
Mas o que eu gostaria de falar é sobre a matéria gospel. O texto cita essa ativista lésbica obviamente não para fazer circular o seu o discurso de aceitação e empoderamento às identidades minoritárias, mas para tentar mobilizar o discurso da “construção social e não inatismo” para reafirmar o local da heterossexualidade e homossexualidade como naturais – e portanto, fazer sentido as relações do “LOGO VOCÊ PODE MUDAR” que eu descrevi acima.
Mas aí vemos o primeiro paradoxo: dizer que as identidades LGBT não são inatas não significa APENAS dizer que as identidades LGBT não são inatas. Dizer que as identidades LGBT não são inatas implica necessariamente dizer que a heterossexualidade e a cisgeneridade também não são inatas.
Se vocês verem o texto gospel, apenas a homossexualidade aparece como uma questão quando discutimos o não inatismo identitário. Isso desvela o discurso de “cura gay” pois se esquece espontaneamente, pela evidência do discurso dominante, que a heterossexualidade tampouco é natural. Isso mostra as falhas argumentativas e os pontos de equívoco e contradição deste discurso.
05/12/2016
Ouvi casos de pessoas trans que não estão conseguindo retificar seus nomes na plataforma lattes; sendo que o cnpq já assumiu um compromisso há muitos anos de que iria respeitar o nome de pessoas trans na plataforma. Entretanto, eu sei bem como funciona o descaso com a nossa demanda, que é tão básica à nossa vida intelectual: a autoria requer um nome próprio. E o lattes, ao desrespeitar o nome próprio de pessoas trans, está sendo conivente com a exclusão de pessoas trans dos espaços acadêmicos.
Me lembro como foi comigo, eu ligando para o serviço de atendimento deles pra pessoa dizer na minha cara que a minha demanda era simplesmente impossível. Pra quem não sabe, quando você faz um perfil no lattes, a única possibilidade de nome que aparece é o do registro civil, pois o sistema deles está vinculado aos dados da receita federal.
E pra desvincular o seu nome desse dado da receita federal que está ligado com o lattes pode ser necessário uma verdadeira via crucis. O mais curioso de tudo é saber que supostamente temos esse direito garantido. Ué, como temos esse direito garantido se quando eu ligo pra eles, me dizem que esse direito inexiste? Como esse direito existe se até hoje vejo casos de pessoas trans que dizem que tem seus emails simplesmente ignorados pelo cnpq? O cnpq acha que pode brincar com as nossas vidas, com nossos nomes, com nossas carreiras e a nossa produção intelectual?
Me parecia (quando eu tive que enfrentar esse processo de brutalização burocrática) que apenas o ouvidor do cnpq sabia da nossa existência. Não se enganem: eu tive que ser insistente, ficar mandando muitos emails cobrando. Eu imagino se por acaso o ouvidor for almoçar e deixar o email por acaso pro estagiário, já se imagina o resultado né: “nome social? isso não existe, pra fazer uma conta no lattes apenas com dados vinculados aos da receita… blablabla”.
Vira e mexe sempre aparece uma pessoa trans me perguntando como faz pra mudar o nome no lattes. Eu vou postar aqui novamente o procedimento:
Mande email para ouvidoria@cnpq.br com os seguintes dados:
- Nome completo (que consta atualmente no registro, ou seja, para mudar o nome no lattes é preciso antes já ter uma conta no lattes com os dados que constam na receita federal):
- Nome completo (social, a ser inserido no sistema):
- CPF :
- RG:
- Nome do pai:
- Nome da mãe:
- Data de nascimento:
- E-mail do pesquisador “CNPq” ou “Pessoal”:
Então gente, vamos lotar a caixa de email do ouvidor porque nós também somos capazes de produzir conhecimento e vamos mostrar que EXISTIMOS.
20/12/2016
As pessoas não entendem o “motivo” de existirem mulheres trans e travestis. Nossas vidas são consideradas “sem sentidos”. Nem ao menos deveríamos existir. Esfregam na nossa cara o nosso suposto devaneio ao dizer que jogamos fora um bilhete premiado e nesta exata medida podemos ser culpabilizadas pelas violências e exclusões as quais estamos expostas. Se jogamos fora o bilhete, é porque consentimos então que as piores coisas possam acontecer em virtude de sustentarmos vidas ininteligíveis. Ninguém liga pra travesti, porque pra ser travesti a pessoa tem que ser “desequilibrada”. Nesta lógica perversa, somos trans porque gostamos de sofrer com isso.
Esse texto pressupõe que nossas vidas não fazem sentido e portanto não seriam viáveis de serem vividas, afinal, impera o questionamento “quem quer ser travesti?” O transfeminismo e o movimento de pessoas trans resiste à isso: nossas vidas fazem sentido porque são legítimas. Temos que construir e lutar por um mundo em que nossas vidas sejam passíveis de serem vividas sem o questionamento do tipo “qual o motivo que te levou a ser travesti?”. Lutamos para que nossas vidas façam sentido para além de questionamentos que visem o nosso extermínio. Existimos para além dos modos de compreensão cisgêneros, ou seja, transcendemos esse tipo de questionamento que implicitamente quer que deixemos de existir. Nossas existência é resistência – existência desde sempre redobrada, re-existida – e existimos apesar de toda a falta de sentido que tentam nos impor.
23/12/2016
Toda vez que eu vejo o relato de solidão de pessoas trans (em especial, nestas épocas do ano) resultado de rejeição e/ou expulsão familiar e me lembro de pessoas que dizem que a transexualidade seria uma forma de “cura gay”, fico indignada. Fico indignada várias vezes, já que são camadas e camadas de violência, distorção e desonestidade.
Como algumas pessoas desonestas podem falar que pessoas trans se “curaram” da homossexualidade na medida em que são literalmente expulsas de casa e são tratadas como tabus e verdadeiras “desonras” familiares? Como pode haver aí “cura” em direção à normalidade a partir da existência dessas expulsões e rejeições que são tão traumatizantes?
Dizer que só existem pessoas trans porque nossas identidades de gêneros seriam “normativas” (porque supostamente estaríamos pretendendo uma cura, cura essa que nunca de fato nos é concedida, vale lembrar) é literalmente ignorar e fazer pouco caso dessas injustiças e traumas. É simplesmente revoltante e me faltam palavras pra descrever todas essas camadas de violência e desonestidade – violência que começa nas rejeições familiares, desonestidades que continuam a partir do momento em que se naturaliza essas violências a partir do momento em que se ignora o conteúdo violento dessas rejeições e expulsões ao dizer que pessoas trans são “gays curados” e “normativos”.
Digo isso hoje porque li relatos da Daniela Andrade, no seu perfil, e da Heymilly Maynard, num texto publicado pelo blog do Neto Lucon.
27/12/2016
Olha o que eu já li “criança trans é uma necessidade criada pelo capitalismo pra abrir mais um nicho de mercado da indústria farmacêutica”. A gente sabe que esse enunciado é um absurdo, já que o capitalismo não “precisa criar” crianças trans pra poder funcionar, sem contar para o fato de que ninguém diz que a cisgeneridade é uma criação do capitalismo para vender hormônios (preciso dizer que a indicação das bulas destes medicamentos são feitas para pessoas cis?). Mas a gente precisa compreender porque tais discursos absurdos acabam sendo proferidos com tamanha espontaneidade e de onde eles tiram sustentação discursiva e argumentativa para serem enunciados.
Precisamos compreender as entrelinhas, os implícitos que sustentam coisas como essas. Quando alguém diz que só existe criança trans por causa de um interesse de mercado não se está apenas afirmando pontualmente isso, já que se pressupõe que as pessoas trans *só existem* por razões exteriores a elas mesmas. O que se está fazendo é algo além: se está objetificando a transgeneridade, nos negando a condição de sujeitos de nossas próprias existências enquanto trans.
Para além da questão propriamente da “indústria farmacêutica do capitalismo”, o que está implícito neste discurso é que a existência de pessoas trans se dá 1) não a partir dos nossas próprios referenciais existenciais e; 2) que a existência de pessoas trans, por esta razão, é “ilógica”, de forma a concluir que ninguém gostaria de ser trans a não ser em virtude de um jogo maligno do capitalismo que implica uma relação inequívoca de alienação.
Percebam, portanto, que a “indústria farmacêutica” é apenas um objeto de um discurso transfóbico estruturado de forma muito mais recorrente. Diz respeito a um discurso que coloca as existências trans como necessariamente alienadas e não viáveis de serem vividas – porque não teriam “lógica”. Colocar que nossas existências trans só se “explicariam” fazendo referência a um interesse escuso do capitalismo é uma forma de transfobia que se estrutura por meio de uma série de outros enunciados possíveis.
O transfeminismo é a ideia radical que as vidas trans importam e por isso, são dignas de serem vividas porque fazem sentido.
28/12/2016
Senta que lá vem textão… Pessoas trans também podem reproduzir transfobia. E transfobia das mais tóxicas inclusive. E eu acho que a partir do momento em que você “reproduz” você em certa medida necessariamente “está sendo”, já que toda opressão se materializa assim, na reprodução de discursos pré-existentes. Sim, é necessário fazer recortes analíticos quando um membro de determinada minoria pratica determinado discurso opressor relacionado a sua própria minoria. Não se trata de nenhuma forma de justificação: assim como não é justificável nenhuma pessoa cis ser transfóbica, não é justificável uma pessoa trans reproduzir transfobia.
Nós podemos, contudo, compreender. Posso compreender uma pessoa trans querendo se colocar numa posição superior à outras pessoas trans, se dizendo “verdadeira” e tentando desqualificar as identidades de outras pessoas trans que não sejam lidas suficientemente pelo viés da inteligibilidade normativa. Posso compreender esse desejo de querer se diferenciar da “ralé” por parte de indivíduos que pertencem a determinado grupo social estigmatizado, porque é justamente assim que as estruturas de dominação funcionam. A gente sabe como pessoas trans são forçadas a se enquadrarem nessas normas para quem sabe conseguirem alguma migalha de inteligibilidade. Por isso é compreensível, mas nunca justificável a partir de um ponto de vista teórico+militante.
Tendo isto posto, gostaria de falar uma coisa sobre nome social. Eu já vi um certo discurso circulando no sentido de questionar o uso de nome social por pessoas trans que não sejam lidas como “pessoas trans de verdade”. Inclusive vi hoje uma pessoa trans que reproduz fortemente esse discurso de excluir aquelas pessoas que ela julga “falsas”, ao ver que tais pessoas “falsas” estariam lutando ativamente para a implementação do seus próprios nomes sociais nos mais diferentes espaços em que o nome social ainda não funciona (tais como: aeroportos, casas noturnas, rodoviárias, estabelecimento eleitoral, diplomas, etc), se coloca numa posição de ressentimento: “como assim esse sujeito que nem é trans de verdade tá achando que pode pedir nome social enquanto eu sou trans de verdade to aqui sofrendo por isso”.
É uma lógica de ressentimento e destruição do outro. Veja bem, a gente que é “trans de verdade” – estou sendo irônica aqui – sabe muito bem que nome social só existe porque lutamos ativamente para isso. Muitas vezes não funciona assim: ah, existe uma portaria de nome social aqui e logo vou poder usufruir deste direito plenamente garantido; ao contrário, você exige este direito na prática, quando ele de fato não existe, pra só depois você poder usufruir dele. Se você é uma pessoa trans que foi pioneira na utilização do nome social numa determinada instituição ou espaço social (coisa que não deve ser nada difícil de encontrar, já que em cada espaço diferente é literalmente uma nova luta contra o desconhecimento e o apagamento de nossas existências trans), sabe muito bem do que eu estou falando.
Vocês conseguem entender o quão tóxico é querer atacar a luta por direitos que uma pessoa está empenhando por puro ressentimento? Será que é tão difícil entender que a luta daquela “pessoa trans falsa” não vai prejudicar a luta das “verdadeiras”? Que tal a gente entender que para a nossa luta, não interessa nem um pouco estabelecermos critérios entre quem é a “verdadeira” e quem seria a “fraude”? Será que não é mais fácil a gente compreender que quando a colega estigmatizada como “falsa” consegue direitos, nós, as “legítimas”, só nos beneficiamos de fato? É muito mais simples: quando a colega estigmatizada pelo discurso da verdade avança na luta pelo reconhecimento de direitos, todas as outras avançam também. Temos que alargar as possibilidades de reconhecimento em nossa militância, e não restringi-las.
29/12/2015
As pessoas dizem que transfobia não existe porque implicitamente desejam a não existência de pessoas trans no mundo. Não querem ter que lidar com nossos problemas, por isso se recusam até mesmo considerar nossa existência como uma possibilidade. Uma recusa que se assemelha a uma denegação (na denegação há uma negação com um funcionamento tipicamente cínico). Há coisa mais cínica que citar os números de assassinatos de pessoas trans pra logo em seguida dizer que transfobia não existe segundo sua *teoria*?
Essas pessoas, almejam, portanto, se esquivarem a qualquer custo de até mesmo pensar sobre questões trans na realidade concreta. É sobre isso que estamos falando quando uma pessoa que se diz feminista diz que “transfobia nem existe”. Isto porque essa posição parte de um sonho dessas pessoas acerca de um pretenso mundo perfeito (higienizado, portanto) que é o mesmo mundo dos reacionários. Um sonho distópico que unem transfóbicos dos mais variados tipos: o mundo perfeito em que a transfobia não existe já que nem ao menos existem pessoas trans. Afinal, como pode existir pessoas trans sendo que o que afirmamos ser é considerado uma fraude?
Quem diz que “transfobia não existe”, mas apenas homofobia, já mostra de que lado está. Não existe nada na realidade concreta que possa basear uma pretensa análise objetiva que nos autorizaria a dizer que apenas homofobia existiria porque é assim e pronto, um pretenso dado bruto da “realidade” e não há nada que possa se fazer. Dizer que existe homofobia ao invés de transfobia não se sustenta sobre nenhuma auto evidência.
Ao contrário, dizer que não existe transfobia é uma tentativa de calar as vozes daquelas pessoas que se insurgem contra a transfobia. Uma tentativa direta de silenciamento contra aquelas pessoas que resistem à uma sociedade que exclui, mata, estigmatiza, empobrece e marginaliza pessoas trans. Portanto: dizer que transfobia não existe é uma tentativa de silenciar as próprias pessoas trans.