Apesar de ser um tanto desgastante pesquisar a violência transfóbica, em especial, os assassinatos de mulheres trans e travestis no Brasil, fazer a coleta de notícias, ler e tabular o que as pessoas dizem nas caixas de comentários e ver como essas notícias circulam tem me dado a possibilidade de fazer um exercício de investigação um tanto interessante sobre os modos pelos quais as pessoas se desimplicam dos problemas. As estratégias que as pessoas usam para pensar que elas não fazem parte do problema ou, ainda, para dizer que o problema não existe. O famoso “lavar as mãos”, dos cristãos e derivados.
Desde minimizar o problema – “tem coisas mais importantes acontecendo” -, dizer que a transfobia está nos olhos de quem vê (e acusa) – “faltou interpretação de texto, fulana não foi transfóbica” -, apresentar desculpas pseudo-sociológicas – “mas fulano é de uma outra geração” “as pessoas ‘simples’ não entendem dessas coisas”-, reclamar que as pessoas são muito sensíveis – “nossa, vocês se doem por pouco” -, até estratégias mais sutis, como aquelas que falam (ou escrevem) em tom de condescendência.
Um exemplo desse último, o livro mais recente da Silvia Federici, Beyond the periphery of the skin. Um exemplo primoroso de condescendência, após um longo silêncio da autora, que vira e mexe dizia, quando perguntada sobre “e as pessoas trans?”, respondia não saber o que fazer com a questão das mulheres trans. Nem eu, Silvia… nem eu… afinal de contas nunca me pensei como uma questão. (Quando questionada sobre a falta de diálogos com teorias raciais críticas, ela dava quase a mesma resposta… ou quando questionada sobre constantemente equivaler ser mulher com a experiência de ter sido escravizado…) Mas ainda sim, uma resposta honesta: não saber o que fazer. Contudo, aparentemente nesse último livro, ela soube.
Na segunda parte do livro, ela se dedica em grande medida a criticar as teorias da “performance” que esvaziaram o conteúdo (material) do que é ser mulher. Ela diz, em algumas passagens, que ela não se refere especificamente ao trabalho de Butler, mas à adoção ligeira e hegemônica (não lembro a palavra que ela usa) por parte dos movimentos feministas mais recentes da noção de performance. Em especial, ela se preocupa com os usos irrefletidos, segundo ela, por parte dos movimentos trans. E aí, a condescendência começa.
Para ela, não refletimos muito bem sobre o que reivindicamos e ainda não entendemos que nossas demandas não têm como levar a nenhum lugar porque mudança, mudanças mesmo, daquelas que chamamos revolução, só acontece com as transformações nos meios de re/produção e uso do trabalho. Pior: parece que para Federici, nem reforma os movimentos trans têm feito, na verdade, o argumento dela, que infelizmente beira a argumentos da Janice Raymond, segue numa série de associações dizendo que as demandas por cuidado e assistência à saúde de pessoas trans, a busca por intervenções corporais, atrapalham a luta de emancipação das mulheres cis. Que o lema feminista do “aceite seu corpo como é, pois ele é bonito do jeito que é” está cada vez mais sendo desarticulado pelos “body remakes”, que incluem tatuagens, cirurgias plásticas e cirurgias de afirmação de gênero. Mas não, Silvia não é transfóbica. (E eu realmente acredito nisso, não é ironia…) Ela está preocupada com a gente, com nossa incapacidade de pensar nos efeitos, nos desdobramentos. Mas se o problema é esse, que pena que Silvia parece nunca ter lido quase nada produzido por pessoas trans, pois desde que uma travesti ou um boyceta pegou numa caneta ou bateu seus dedos contra as teclas de um computador, a gente tem escrito sobre os limites do transmedicalismo, a agonia da busca incessante por passabilidade, as ficções dos modelos binários de transição, etc…
Mas não, Silvia não nos lê e, por isso, fica preocupada à toa.
(Comecei falando sobre se desimplicar do problema e se existe um tipo ideal de sujeito desimplicado, ele é aquele que “tinha boas intenções”. Temos exemplos deles bem aqui nas esquinas do facebook, não precisa ir muito longe. Mas decidi comentar um pouco das boas intenções da Silvia em nos mostrar que estamos presas numa armadilha e nem sabemos. Ela beirou dizer que somos manipuladas pela aceitação de “medical god-like creators” – criadores médicos quase divinos.)
(P.S.: não estou propondo que paremos de ler Silvia, sei que ela é o grimório de muita bruxa que tem uma samambaia como familiar. Mas, às vezes, é bom escrever em tom condescendente como forma de responder à condescendência de outres. Ainda mais quando precisamos deixar de escrever sobre outros exemplos de “lavar às mãos”, porque não podemos dividir o que já está desde o começo dividido…)