Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Psicanalistas fazem desserviço, novamente, à população trans. Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos reiterando ideias de que a aceitação social de pessoas trans estaria ligada à homofobia em uma entrevista. Escrevendo livros (“Transexualidade: O Corpo entre o Sujeito e a Ciência”, lançado pela Editora Zahar), fazendo sensacionalismo barato na grande mídia, construindo a falsa narrativa de que o acesso a saúde de pessoas trans seria algo “perigoso” com base em relatos anedóticos de arrependimento.
Alegam tratar a questão sem “simplificação”, abordando questões supostamente não tratadas, como destransição. O que na verdade esses psicanalistas querem fazer é construir a narrativa de que a aceitação da transexualidade seria algo ruim porque hipoteticamente pessoas poderiam se arrepender de fazerem alterações corporais. Se baseando na premissa completamente equivocada de que pessoas trans seriam profundamente incentivadas socialmente a serem trans porque reproduziriam “estereótipos normativos de gênero”.
Bom, esses psicanalistas deveriam entender que a narrativa equivocada de que a medicina pretensamente normativa estaria “forçando” pessoas a virarem transexuais ou alterarem seus corpos reproduz inúmeros estigmas transfóbicos e ignora a autonomia e vontade de pessoas trans. Nos infantiliza, reproduz ideais ultrapassados sobre corpos “naturais”, como se intervenções nos corpos, se forem trans, seja algo a priori indesejado ou perigoso. É a reiteração do discurso do paternalismo agora sob a roupagem de psicanálise. Isso não é sobre sua “pesquisa teórico-clínica de três anos”. É sobre a vida de pessoas. Ninguém está impedindo de se falar sobre arrependimento ou destransição (que aliás, eu mesma já abordei aqui). O que estamos impedindo é desonestidade, falta de seriedade, leviandade mesmo.
Essa retórica não é nova. Janice Raymond já em 1979 dizia que transexuais deveriam ser “moralmente erradicados” pois a alteração dos corpos por pessoas trans seria algo artificial e por isso, segundo ela, algo ruim. Sheila Jeffreys diz também que a transexualidade é um atentato aos direitos humanos porque segundo ela, se baseia numa política de mutilação dos corpos “saudáveis”. Raymond dizia também que existia algo como um “império transexual”, isto é, um império que forçava pessoas a serem transexuais para se enquadrarem no binarismo de gênero e acabarem com o movimento feminista. Ambas dizendo as mesmas coisas sobre pessoas trans se enquadrarem em ideais supostamente normativos de gênero. Lembra bastante uma tal teoria pesquisada e elaborada por uma dupla de psicanalistas que adoram falar groselha sobre pessoas trans na mídia e estão ganhando espaço em grandes editoras, não é mesmo?
O que esses dois psicanalistas estão fazendo não é nada mais nada menos que (re)atualizar esse tipo de perspectiva tão prejudicial e estigmatizante para a população trans, pois oferece a legitimação do discurso de que os direitos trans estariam “indo longe demais” – quando na verdade não estamos nem no começo. Posicionamentos como desses dois psicanalistas conferem legitimidade a interpretações estigmatizantes sobre pessoas trans, algo muito distante da escuta atenta e ética defendida pela psicanálise.
Vejam as formulações que esses psicanalistas usam: “a medicina leva os sujeitos transexuais a demandar” – como se nós não fôssemos capazes de sermos sujeitos da nossa própria demanda. A transexualidade, como eles alegam, não é uma “tentativa de higienização dos corpos e adequação do biológico sob a égide do gênero”. Isso é completamente reducionista e ofensivo. Não existe um império de médicos fornecendo “soluções fáceis e higienistas” que fariam pessoas demandarem alterações em seus corpos que de alguma outra forma não desejariam. Não existe nenhum tipo de “oferta imediata e tentadora” de mudança de sexo como eles alegam. Ou os autores entendem que os 10 anos de fila no SUS como algo imediato? Existem, ao contrário, frequentemente equipes de médicos, dos poucos que existem, aliás, dispostos a minimamente atender pessoas trans, constantemente duvidando da legitimidade da sua identidade de gênero e acreditando que existem “falsos transexuais” a espera de serem “desmascarados” pelo diagnóstico correto.
Não usem o elevado índice de depressão e suicídio para propagar discursos paternalistas e ferir a autonomia dos nossos corpos. Faz parte do agravo mental de pessoas trans vivermos em uma sociedade em que somos tuteladas, em que enfrentamos mensagens institucionais de que nossas vidas não valem a pena, de que não deveríamos sermos trans, de que “levamos gênero sério demais”, que “reproduzimos estereótipos falsos sobre feminilidade e masculinidade”, etc, tudo tendo em vista banalizar nossas demandas por existência.
E não silenciem a verdade: as alterações corporais que pessoas trans realizam tem na realidade altíssimas taxas de sucesso e de não arrependimento. Não silenciem a verdade: pessoas trans tem melhor saúde mental quando conseguem acessar cuidados médicos que incluem hormonioterapia e cirurgias. Isso é o que diz as evidências científicas. O que esses psicanalistas fazem é precisamente isso: silenciam os dados e evidências científicas que vão contra suas crenças de que corpos devem ser mantidos inalterados, talvez para garantir um selo de naturalidade cisgênero a todo custo.
Não use as nossas vidas e narrativas para dizermos que pessoas trans reforçam estereótipos de gênero, como se pessoas trans tivessem culpa, como se isso fosse uma questão de “culpa” e não formas concretas pelas quais pessoas trans sobrevivem. Como se pessoas cis não reproduzissem estereótipos. Transexualidade não se “pega” por contágio social, não se “pega” transexualidade ao saber que transexuais existem na mídia ou pelo crescimento da visibilidade de transexuais na mídia. Leiam Julia Serano e Zinnia Jones, elas já desmistificaram isso há muito tempo. Não tratem a invisibilidade brutal que pessoas trans estão expostas como algo natural.
Falam sobre esterilidade decorrente da utilização de bloqueadores hormonais, por exemplo, como um “grave dano a saúde” e simplesmente ignoram os benefícios que a utilização desse tratamento tem para jovens com disforia de gênero. Ignoram que se trata do uso de medicamentos com efeitos completamente reversíveis. Nem mencionam a utilidade e lógica por trás de um tratamento como esse, ao invés, fazem questão de dizer logo em seguida que não existe base biológica para identificação trans. A utilização de bloqueadores tem a intenção justamente para que as pessoas consigam refletir mais acerca da sua própria identidade antes que efeitos permanentes em seus corpos aconteçam. A utilização de bloqueadores não visa forçar ou incentivar que pessoas “virem” transexuais. Se quiserem ler mais sobre isso, traduzi uma penca de textos de Zinnia Jones sobre isso no meu medium.
Não existe um “império transexual” convencendo pessoas homossexuais e em discordância de gênero a serem transexuais. Apelar para a retórica falida do “império transexual” é reforçar estigmas, é pressupor que a transexualidade não é um caminho subjetivo igualmente válido e merecedor de reconhecimento, é desconsiderar a autonomia corporal de pessoas trans, além de expressar uma concepção equivocada que antagoniza as lutas e demandas por reconhecimentos de identidade de gênero e sexualidade. É jogar a psicanálise na lata do lixo.
O que esses psicanalistas acabam ignorando abertamente são as tentativas transfóbicas que rotineiramente pessoas trans tem que enfrentar que visam elas desistirem de serem trans. Será que esses psicanalistas desconhecem o sofrimento psíquico decorrente das sistemáticas negações de reconhecimento identitário de jovens trans? Quem se importa pelas pessoas trans que se arrependem de NÃO terem transicionado? Eles não sabem que forçar a cisgeneridade como único caminho subjetivo não gera sofrimento psíquico? Esses psicanalistas desconhecem a realidade que vivemos, pois no mundo em que vivo pessoas não são “incentivadas” a serem trans, e sim em serem cisgêneras E heterossexuais – e é um combo, viu?
Ao contrário do que alegam os psicanalistas em questão, tentam nos convencer de mil maneiras mais sórdidas possíveis de que somos cisgêneros “na verdade”, seja pela verdade imutável e inabalável da biologia, seja pela verdade sagrada da religião; famílias fazem verdadeiras chantagens emocionais (pra não dizer abuso mesmo) que esses psicanalistas simplesmente ignoram. Ignorar as dificuldades e obstáculos pelos quais pessoas trans demandam o reconhecimento da autenticidade suas identidades é algo desumano, pra logo em seguida dizerem que as alterações corporais seriam um “caminho fácil” e que os médicos tem uma “resposta pronta”. Como se essa “resposta pronta” fosse a pronta aceitação das nossas identidades de gênero e nosso enquadramento na normatividade de gênero. Isso é debochar da nossa cara, é cuspir na cara de uma travesti periférica cuja expectativa de vida é de 35 anos.
E não me venham com a retórica de que identidade trans é “cura gay”, porque isso é uma instrumentalização e invisibilização absurda e sem sentido sobre nossas identidades e sexualidades. Citar o caso do Irã é desonesto e não é nada diferente da retórica de ódio das TERFs. Usar Irã aqui pra questionar a autonomia das pessoas trans e sugerir que transexualidade é de alguma forma um tipo de cura gay é um belo de exemplo de discurso orientalista que na verdade está se lixando para uma análise concreta da vida de LGBTs no Irã.
Esses psicanalistas alegam terem feito uma pesquisa durante 3 anos, eu convido esses psicanalistas a lerem Julia Serano, Viviane Namaste, Zinnia Jones, Gayle Salamon, Jay Prosser, Henry Rubin, Patricia Elliot, Bobby Noble, Susan Stryker, Sandy Stone, etc, quem sabe assim deixam de reproduzir erros tão básicos em relação à análise de gênero e sexualidade. Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira poderiam começar lendo o excelente volume 4, número 3-4, do periódico acadêmico Transgender Studies Quarterly dedicado exclusivamente para a relação entre vivências e perspectivas trans e a psicanálise e se inteirarem minimante sobre a questão que desconhecem apesar de “3 anos de pesquisa”.
Espero que os autores leiam com atenção este texto (praticamente um desabafo de uma pessoa transexual) e revejam seus posicionamentos, sejam públicos, teóricos e éticos.
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